
O mundo viveu momentos que foram decisivos para a ocorrência de mudanças profundas em sua trajetória histórica. Um desses momentos se deu nos séculos 17 e 18 e adentrou o início do século 19. No sentido aqui expressado, a palavra “momento” não significa uma data fixa, mas um período de anos e décadas de acontecimentos políticos e sociais que, somados, promoveram modificações radicais na economia, na política, nos direitos individuais e na vida social.
Naquele momento citado – em parte chamado de Iluminismo –, cansada de viver sob as botas de reis tiranos, oprimida pelo aparelho de Estado, parte da humanidade, sobretudo no mundo ocidental, se lançou em revoltas e se encarregou de pôr fim à tirania e à opressão, e construiu um novo arcabouço jurídico, político e econômico. Mudanças foram feitas para eliminar a tirania dos reis sobre o povo, de um lado, e implantar liberdades garantidas por lei, de outro. Os movimentos e as mudanças compõem o que se pode chamar de “revolução liberal”, isto é, a libertação do indivíduo das garras dos soberanos e dos governos.
Foi assim que a ordem liberal se baseou em cinco direitos: (a) o direito à livre escolha do trabalho e da profissão; (b) o direito de não se submeter a ações e imposições dos reis se não fossem autorizadas por leis votadas pelo povo, por meio de seus representantes; (c) o direito de não ser processado nem ter seus bens confiscados pelo rei, a não ser diante de um crime provado em processo legal e com amplo direito de defesa; (d) o direito de propriedade privada, ou seja, o direito de apropriar-se livremente dos frutos do trabalho pessoal; (e) garantia judicial para os contratos juridicamente válidos, firmados livremente pelas partes.
Se o problema fosse apenas fazer leis criando direitos, nenhuma nação do mundo seria pobre e não faltaria nada para ninguém
A palavra “direito” implica necessariamente que o benefício concedido a alguém corresponda à obrigação de outro alguém. Esse “outro alguém” pode ser uma pessoa, uma empresa, uma instituição jurídica qualquer ou o Estado. Ou seja, só tenho “direito” a algo se alguém for obrigado a me conceder esse algo. O problema no Brasil é que o baixo nível educacional e a cultura política contribuíram para disseminar a ideia de que direitos podem ser concedidos sem identificação de quem seja obrigado a provê-los e quem deve pagar a conta, quando houver.
É claro que, no campo do comportamento moral, o cumprimento da conduta correta não exige pagamento em dinheiro ou coisa. Se eu tenho o direito de ir e vir sem ser molestado, todos têm a obrigação de não me molestar, como eu não posso molestar nem agredir ninguém. É óbvio que, se alguém me agride, eu tenho o direito de revidar para me defender. Só há direito real quando todos se obrigam a respeitar tal direito em seu semelhante.
Esse tipo de direito – o de conduta moral, que obriga o indivíduo a fazer ou a não fazer certa coisa – implica o que chamamos de “obrigação não onerosa”. Isto é, nesse caso, ninguém nem o governo têm de desembolsar dinheiro, bem ou coisa, para que todos respeitem os direitos de todos. É o caso, por exemplo, em que a lei nos obriga a respeitar os idosos, a não ter preconceito de raça, a não bater em criança.
Diferente é quando o direito de alguém implica o direito de receber dinheiro, bem ou serviço, dado por outro alguém, empresa ou governo. Por exemplo, se determinada categoria de funcionários públicos exige o direito de ter um adicional de auxílio-moradia, a população tem de pagar a conta. A cultura dos direitos no Brasil assumiu um contorno defeituoso, sobretudo após a Constituição de 1988, que encheu a população de direitos onerosos, como se fosse possível dar tudo a todos sem definir quem pagará os custos. Infelizmente, nenhum povo usa ou consome mais do que produz.
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Os direitos onerosos vão desde os políticos ou burocratas públicos que julgam ter direito a um elenco de auxílios e benefícios, passa pelo empresário ávido por isenções e subsídios, e chega até o indivíduo que julga merecer benesses que o resto da sociedade não tem. Uma das distorções no Brasil foi a separação entre a classe dos trabalhadores privados e a classe dos políticos e funcionários públicos, que levou à criação de regimes de previdência social e benefícios salariais não apenas diferentes – o que é até aceitável –, mas com distâncias enormes e concentradoras de renda. Quem diz isso não sou eu: é um órgão do governo federal, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicas (Ipea).
Um exemplo de direito oneroso nunca cumprido diz: “todos os brasileiros têm direito à moradia digna”. Apesar disso, existe um déficit habitacional de 7,5 milhões de moradias e milhões de famílias seguem morando em favelas, palafitas e barracos paupérrimos. O SUS reza que todos têm direito à assistência à saúde, mas milhões de pessoas seguem na penúria em filas e ausência de atendimento.
A cultura de direitos não é ruim em si mesma. Ela se torna um problema quando a lei cria direitos onerosos que o estágio econômico da nação não produz bens e serviços suficientes para cumprir tais direitos. Se o problema fosse apenas fazer leis criando direitos, nenhuma nação do mundo seria pobre e não faltaria nada para ninguém.
José Pio Martins, economista, é reitor da Universidade Positivo.



