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Em esclarecedora entrevista concedida à revista Conjur, o professor e especialista João Carlos Souto, um dos mais respeitados estudiosos do constitucionalismo norte-americano, relembrou que Rui Barbosa, em época na qual o Direito francês e a cultura francesa imperavam, trouxe dos Estados Unidos e da Constituição americana de 1787 os modelos de bicameralismo, federação, presidencialismo e Suprema Corte, aqui implantados de cima para baixo.
Perguntado sobre o disparate de o nosso Supremo Tribunal Federal julgar quase 100 mil processos em um ano e a Suprema Corte americana julgar apenas 100 no mesmo período, e sobre a possibilidade de o Brasil adotar esse filtro radical, o estudioso respondeu que “É muito difícil, para não dizer impossível. Porque, mais do que o ordenamento legislativo que permite essa avalanche de recursos, há uma questão cultural. Nenhum dos atores do sistema de Justiça aceitaria esse filtro”.
As informações da entrevista ajudam a concluir que temos um sistema judicial simbiótico e distorcido ao mesmo tempo. Apesar de seguirmos o modelo de legislação codificada, editada predominantemente pelo poder central (União), derivado dos sistemas francês e romano-germânico, copiamos o modelo de Justiça americano, que é centrado em precedentes jurisprudenciais nascidos da realidade da vida, mas sem limite de julgamento de processos, muito diferente do que ocorre na Suprema Corte americana.
Deu no que deu, com uma Constituição ampla, regulando quase todos os aspectos da vida nacional e um sistema recursal abundante e altamente permissivo; temos nossa suprema corte funcionando como se fosse uma quarta instância, atolada em estoque de quase 60 mil processos, concedendo liminares monocráticas provisórias com validade longeva, pedidos de “vista” sem limites, atrasando julgamentos colegiados importantes em anos, emperrando o funcionamento do sistema judicial e causando insegurança jurídica, por falta de jurisprudência nacional firme e tempestiva.
O especialista adverte que é quase impossível uma mudança, porque há uma questão cultural e os atores do sistema de Justiça não aceitariam esse filtro. Guardadas as proporções, faz lembrar o sensacional filme Não olhe para cima, uma bruta ironia, a partir de um meteoro que vai acabar com a vida na Terra em seis meses, absurdamente desconsiderado pelas autoridades, corporações descompromissadas com a civilização e empresários que só pensam em lucro, apesar do armagedom iminente.
É inescapável uma paródia com objetivo construtivo: a formatação da cúpula do nosso Judiciário não funciona como deveria, burocratiza e inviabiliza o sistema judicial, é uma trava para o desenvolvimento do país, mas os atores e os incluídos no amplo espaço de conforto do sistema judicial estão muito bem, não querem mudança. Então, não olhe para cima, finja não ver o megaproblema; o prejuízo contínuo para a sociedade não tem relevância, o sofrido povo brasileiro não tem importância.
A quantidade de competência processual do Supremo é risível. Em 2020, recebeu 74 mil processos (um disparate na comparação com seus congêneres), quantidades incompatíveis para um tribunal de 11 ministros. Os números são estarrecedores, inviabilizam a eficiência e agilidade esperadas do nosso tribunal maior. A lentidão espraia-se por todo o Judiciário e gera um defeito estrutural ruinoso, bom para os que querem escapar da Justiça e para os que faturam com a ineficiência sistêmica.
A partilha de poder, mesmo quando a experiência diz que deve ser feita, é sempre uma luta. Quem tem não quer perder. É corrente a história de que a retirada de poder do Supremo para criação do STJ na Constituição de 1988 foi um parto a fórceps; mesmo assim, foi concessão parcial ineficaz, somente para questões de lei ordinária, mantendo um fluxo espantoso de recursos sobre questões constitucionais para o Supremo, gerando esse caos de indefinição e demora em questões fundamentais para o país.
Temos um Judiciário amplo, composto de Justiça comum e especializadas, federal e estaduais, assentado em quatro instâncias (juízo local, tribunais regionais, tribunais nacionais e Supremo) que pode ser aprimorado com facilidade, sem perda de qualidade, bastando transferência de competência constitucional para os tribunais nacionais, fazendo com que os processos subjetivos sejam concluídos na terceira instância, no máximo, como ocorre na maioria das democracias, libertando suficientemente a nossa suprema corte para julgamento rápido das questões nacionais importantes.
Até quando os atores do sistema judicial, beneficiários do Judiciário lento e burocratizado, vão manter esse extravagante poder concentrado na nossa suprema corte, em claro prejuízo para a nação? Como vão responder perante a história por essa distorção injustificável? Onde está a opinião pública da grande maioria dos operadores do Direito que querem um Judiciário eficiente e justo? Os juristas, parlamentares e operadores do Direito precisam conversar sobre isso.
José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá.