A convocação feita por Joe Biden a 40 líderes mundiais, dentre eles o Brasil, para participar da Cúpula dos Líderes sobre o Clima ocorrida nos dias 22 e 23 de abril teve o condão de agitar a política externa nos países convidados. Dentre as causas, neste artigo apontamos duas principais: a baixa performance dos países nas questões climáticas vis-à-vis as metas assumidas no Acordo de Paris de 2015 e o elevado grau de transparência desta reunião, que foi transmitida pela internet, ou seja, a posição dos países e os compromissos assumidos foi conhecida pela sociedade civil sem os filtros da diplomacia.
A cúpula convocada por Biden buscou recolocar os Estados Unidos como protagonistas no cenário internacional sobre as questões ambientais, após o afastamento ocorrido durante o governo Trump. Ademais, o encontro teve como propósito a preparação dos países para a Conferência das Partes (COP) 26 que será realizada em novembro em Glasgow, na Escócia. A COP é o órgão de gestão da Convenção das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (CNUMC) e tem por objetivo apresentar propostas para os países-membro da CNUMC no sentido do combate às mudanças climáticas. Esta estrutura faz parte do chamado regime internacional das mudanças climáticas, que tem por estrutura jurídica a própria CNUMC e a COP, o Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris.
O regime das mudanças climáticas, a despeito das evidências científicas que apontam para uma ameaça real e existencial, não tem produzido resultados eficientes, dada a apatia com que os Estados têm tratado estas questões, especialmente desde o ano passado, com a pandemia.
O Brasil sempre foi um grande protagonista neste regime desde a sua institucionalização pelas Nações Unidas, mas episódios como o “passar a boiada”, o aumento das queimadas e do desmatamento na Amazônia, e o crescimento das invasões em terras indígenas – somente para citar alguns casos – fizeram com que o país participasse da reunião sob enorme pressão (o país foi chamado pelo jornal alemão DW como “ex-potência climática”). A participação do Brasil na cúpula já pode ser considerada uma vitória, considerado o histórico dos desmandos ambientais capitaneado pelo atual governo, que já não havia sido convidado para o Climate Ambition Summit em 12 de dezembro de 2020.
Apesar deste contexto, o presidente Jair Bolsonaro enviou uma carta ao presidente norte-americano na qual afirmou que o Brasil merece ser pago “pelos serviços ambientais que seus cidadãos têm prestado ao planeta”. Todavia, essa estratégia de cobrar doações de países ricos como condição necessária para reduzir o desmatamento no Brasil se mostra fadada ao insucesso, considerando que o Brasil, em anos anteriores, conseguiu reduzir o desmatamento com seus próprios recursos. Essa postura de exigir dinheiro estrangeiro pode ameaçar acordos de comércio e outros acertos diplomáticos entre Brasil e Estados Unidos.
Esta postura ficou clara no discurso do presidente Bolsonaro ao articular a recolocação das florestas no mercado de carbono (artigos 5 e 6 do Acordo de Paris), ou seja, imprimindo uma desproporcional abordagem econômica sem apontar o enfrentamento das reais questões ambientais vivenciadas no Brasil, que via de regra atingem as parcelas mais vulneráveis da sociedade: povos indígenas, comunidades ribeirinhas e pequenos fazendeiros.
O discurso do presidente olhou para trás ao utilizar ganhos de natureza ambiental de outros governos e adotou compromissos para um futuro em que não estará mais no governo, o que torna o discurso altamente vazio em termos de conteúdo e de proposições.
No caso americano, a iniciativa de convocar a Cúpula e propor os temas de financiar a emissão zero, discutir benefícios econômicos e estimular a inovação tecnológica não traz nada de novo que não estivesse presente nas discussões sobre as mudanças climáticas e outras questões ambientais: quem paga a conta e como medir a responsabilidade daquele que recebe o incentivo. Os Estados Unidos estão dispostos a pagar parte da conta no sentido de transferir tecnologia limpa ou financiar a emissão zero em países em desenvolvimento? Os países em desenvolvimento serão transparentes nas ações de implantação das tecnologias e no combate a agressões ao meio ambiente?
A tentativa dos Estados Unidos de retornar ao multilateralismo e encabeçar as discussões é positiva no sentido de que o país, como grande potência mundial, tem o condão de induzir transformações e posturas em outros países.
A participação da China na cúpula reforçou a sua atuação no desenvolvimento de tecnologias limpas de produção de energia e a forma como o país trabalha nos vários níveis de governança para atingir a meta de emissões. Durante a cúpula, a China anunciou a erradicação do uso de usinas de carvão até 2060. Na cúpula não se observou a postura de antagonismo entre a China e Estados Unidos que havia sido prevista por alguns analistas em razão das disputas comerciais entre os países; este tema foi deixado para o discurso dos 100 dias do governo Biden no Congresso.
A outra causa de preocupação foi o fato de a cúpula ter sido transmitida ao vivo pela internet. Esta preocupação está relacionada diretamente com as pressões que os países sofrerão até a COP26, em Glasgow. Esta, sem dúvida, é uma das grandes contribuições da cúpula: reforçar uma governança policêntrica nas mudanças climáticas que integre outros atores, especialmente os não estatais, nos debates e iniciativas.
A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 estabelece, em seu princípio 10, a participação da sociedade civil nas questões ambientais no sentido de que os Estados devem “facilitar e estimular a conscientização e a participação popular, colocando as informações à disposição de todos”. É verdade que a participação da sociedade civil pela via das organizações não governamentais vem crescendo desde a ECO-92, mas, no que tange à transparência das negociações internacionais, as questões de meio ambiente ainda continuam em grande parte confinadas na “caixa preta” da diplomacia entre os países, em que boa parte dos debates não repercute na sociedade civil com vistas ao escrutínio.
Ao descrever a atividade da diplomacia nas relações internacionais, John J. Mearsheimer, em seu livro Por que os líderes mentem: toda a verdade sobre as mentiras na política internacional, aponta uma dimensão da “caixa preta” da diplomacia:“Sir Henry Wotton, diplomata britânico do século 17, comentou certa vez que um embaixador é ‘um homem honesto enviado para mentir no estrangeiro pelo bem de seu país’. Esse comentário capta muito bem o fato de que os países mentem uns aos outros porque pensam que a mentira serve ao interesse nacional. A observação de Wotton, no entanto, é enganosa ao insinuar que diplomatas e governantes rotineiramente passam seu tempo mentindo entre si. Na verdade, os líderes políticos e seus representantes diplomáticos dizem a verdade uns aos outros com muito mais frequência do que mentem. E, mesmo quando estão empenhados em enganar os outros, eles estão mais propensos a recorrer à omissão do que a uma mentira manifesta. O sigilo, como praticamente todos os estudantes de política internacional sabem muito bem, é uma ferramenta consagrada para o desenvolvimento de armas e estratégias que podem oferecer a um país vantagem sobre seus rivais”.
A transmissão da cúpula lançou mais luz sobre as posições e intenções dos países. É claro que a linguagem utilizada nos discursos proferidos pelos líderes mundiais foi muito bem talhada por suas equipes, mas há elementos que estão além do texto e do discurso que podem ajudar a sociedade civil a formar uma percepção sobre as intenções dos países mais próxima da realidade dos discursos proferidos. O exemplo mais vivo deste argumento foi o discurso do presidente Bolsonaro, talhado com palavras de alto impacto, mas dissociado da estratégia “passa boiada” articulada pelo seu ministro do Meio Ambiente.
Com isso, a principal função cumprida pela cúpula é a abertura de espaços participativos na gestão do meio ambiente, formando, assim, um espaço político democrático e crítico das posturas até o momento refratárias ao enfrentamento da crise climática que vivemos, apesar da abundância de evidências no sentido de se tratar de uma ameaça existencial para a humanidade e a natureza.
Fato é que a crise climática agravará a desigualdade dentro dos países, assim como entre os países. É necessária uma revisão do modelo de impacto climático de cada nação para que possamos superar essa fase de negação da crise climática que estamos vivendo. A economia precisa ser descarbonizada. Já está mais do que na hora de entendermos que o mundo social e o mundo natural fazem parte da mesma realidade e que a natureza sobreviverá sem a humanidade. Podemos dizer o mesmo sem a natureza?
*Douglas de Castro é advogado especializado na área ambiental e diretor do Núcleo de Estudos Avançados em Direito e Política Internacional na Ambra University. Alana Costa é mestranda em Direito Internacional na Ambra University.
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