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Nos últimos meses avolumaram-se artigos e crônicas sobre o fim do mito da cidade que era um exemplo para o mundo, o fim da criatividade curitibana e o que fazer para restaurá-la e estancar a hemorragia urbana provocada pela decadência da cidade. O jornal francês Le Monde publicou recentemente um artigo altamente crítico sobre Curitiba, que se inicia com a frase "É o fim de um mito". O artigo foi apropriado por aqueles que, por razões técnicas, políticas ou ideológicas, negavam a realidade do prestígio internacional de Curitiba, e foi também um verdadeiro rastilho de pólvora que detonou críticas daqueles que se sentiram apoiados, confiantes e protegidos pelo prestígio do jornal, dentre os quais alguns que não o leram e mesmo assim exararam suas "análises" e preconceitos.

Manifestram-se os jornais e também "urbanistas", sociólogos e arquitetos, a academia e os demais "especialistas". Só não houve uma manifestação clara do poder público, ocupado que está com o metrô, que a seu ver será a panaceia que devolverá à cidade o brilho perdido. De um modo geral a opinião expressa pelas diversas pessoas era de que a cidade teria de ser reinventada, pois a degradação, em especial do sistema de transporte, chegou a um ponto terminal.

Acredito que esse discurso todo sobre a situação de Curitiba deveria ser objeto de uma análise mais equilibrada. Talvez não seja eu a pessoa mais indicada para fazê-lo; entretanto, o meu passado, minhas passagens pelo Ippuc e pela Urbs, minha vivência dos problemas de Curitiba ao longo de 50 anos e a minha experiencia como consultor internacional me animam a fazer esta análise. Nela vou me ater aos problemas de território e transporte, pois não me sinto com conhecimentos suficientes para abordar as áreas de saneamento e segurança.

O que diz realmente o Le Monde no artigo assinado pelo jornalista Thomas Diego Badia? O texto está centrado sobre alguns aspectos que abrangem o uso do território, o sistema de transporte, a segurança e o saneamento; em alguns momentos, se apoia sobre comentaristas locais.

Ao tratar do território, aborda a explosão demográfica e a expansão urbana, "às vezes anárquica", e o favelamento dos anos 80, afirmando que Curitiba "está poluída e desequilibrada socialmente como o Rio e São Paulo", que são cidades muito maiores. À afirmação de que "nos anos 70 o prefeito Jaime Lerner quis fazer de Curitiba uma ‘cidade com escala humana’" contrapõe-se uma frase do livro Curitiba e o Mito da Cidade Modelo, publicado pelo historiador Dennison de Oliveira em 2000, que afirma que "os interesses privados foram sempre favorecidos em detrimento dos públicos, o que levou à situação atual".

O artigo afirma que a última grande inovação da cidade remonta a 1980, ao propor a modernização da BR-116, mas que esta solução é criticada devido aos engarrafamentos "monstruosos" e à dificuldade de sua travessia, sendo que a rodovia criou uma fratura urbana entre uma zona norte favorecida e uma zona sul isolada.

Quanto ao sistema de transporte da cidade, o artigo diz, inicialmente, que a rede de transporte curitibana, concebida para ser rápida e ecológica, foi admirada e mesmo imitada no Brasil e no exterior. A partir daí, passa a enumerar as razões de sua decadência, citando inclusive opiniões de autoridades locais, como a de Lafaiete Neves, professor de Economia na Universidade Federal do Paraná, que, entre outras coisas, diz que "no início o sistema era performante, mas afundou sob o peso do número de passageiros".

Citando a opinião de observadores, o artigo afirma ainda que a causa principal dessa degradação seria o quase monopólio das principais companhias de transporte público: elas são propriedade de três famílias cuja influência política é grande. Esse monopólio existia desde a criação da rede, mas hoje impede o desenvolvimento de modos de transporte alternativo como a construção do metrô e a instalação de ciclovias.

Ao abordar o problema das tarifas, o artigo começa dizendo que em todas as grandes cidades do país milhares de brasileiros se manifestaram em junho de 2013 exigindo a redução das tarifas vigentes; em Curitiba, o preço da passagem foi reduzido de R$ 2,85 para R$ 2,70, mas continua entre os mais elevados do país, sendo julgado abusivo pelo Movimento Passe Livre e dissuasivo para os mais pobres. A seguir, o artigo passa a comentar problemas pontuais do sistema: os tubos (paradas de ônibus), desde sempre exaltados pelo respeito ao meio ambiente, são criticados por sua falta de largura e ausência de climatização nos períodos de calor intenso. Os passageiros podem ser obrigados a esperar entre 30 e 45 minutos para tomar seu ônibus, que estará sobrecarregado nas horas de pico. As enormes filas de espera, o preço da passagem e a saturação da rede empurram os habitantes para o automóvel. Como resultado, Curitiba é a cidade brasileira com o maior número de veículos por habitante – 1,3, em média.

Após esse breve resumo das afirmações feitas no artigo, analisemos as opiniões expressas nele. Verificamos que Curitiba absorveu, entre 1970 e 2013, um enorme contingente habitacional, tendo passado de 650 mil habitantes (quando o Plano Serete foi aprovado) para 1,85 milhão. Acomodar esse crescimento – que em 40 anos praticamente triplicou a população de Curitiba, e cuja maior intensidade ocorreu nos anos 70 e 80 – foi extremamente difícil. O crescimento da infraestrutura urbana e social nao conseguiu acompanhar o ritmo do crescimento da população. Isso gerou bairros pobres e favelas.

De acordo com a Cohab, entende-se por "ocupação irregular" todos os assentamentos urbanos efetuados sobre as áreas de propriedade de terceiros, sejam elas públicas ou privadas, desprovidas de infraestrutura urbana. Incluem-se aqui os loteamentos clandestinos promovidos pelos proprietários de terras sem a observância de parâmetros urbanísticos e legais mínimos. As ocupações irregulares surgiram a partir da década de 50. Entre a década de 50 e 70, representavam 21,91% das ocupações totais, chegando a 37,33% na década de 80.

A evolução da ocupação irregular em Curitiba, à qual correspondem assentamentos com e sem processo de regularização e loteamentos clandestinos com e sem regularização, ocorreu da seguinte forma: em 2000, esta população correspondia a 13,6% da população total e a 12,17% dos domicílios. Em 2005, correspondia a 13,5% da população total e a 11% dos domicílios. Em 2010, correspondia a 13% do total. Isso significa uma reciclagem que tende a ser maior no futuro. São bons estes números? Certamente não. Eles constituem um desafio e um problema que teremos de resolver. Mas daí a afirmar que Curitiba está "congestionada, poluída e desequilibrada socialmente" como o Rio de Janeiro – com 6,5 milhões de pessoas, 1,5 milhão delas morando em favelas, sem contar os bairros muito pobres – mostra-se tendencioso, desinformado e exagerado.

A Linha Verde, na visão do artigo, foi a última grande inovação da cidade ao propor a modernização da BR-116, que a dividia em duas partes. Entretanto, ao abordar somente os problemas de tráfego e conexão, o texto desqualifica a obra. A Linha Verde não é um problema, é uma oportunidade. É um novo eixo com todas as suas características, não podendo ser considerada somente um corredor viário. Em que pesem os problemas atuais, sérios, mas temporários, é uma alternativa para o desenvolvimento da cidade, tendo suas funções lastreadas pelos princípios básicos de seu planejamento. A transformação de uma rodovia numa via urbana faz com que a grande cicatriz comece a se fechar. Já não existe mais o "depois" da BR – esta, sim, uma fratura urbana –, mas os dois lados da Linha Verde integrados por um novo zoneamento que, substituindo a antiga zona de serviços, permite o adensamento vertical e induz à diversificação através de mecanismos contidos em lei.

Graças à Linha Verde, será possível aumentar significativamente a capacidade da Rede Integrada de Transporte de Curitiba com linhas Maracanã-Centro e Maracanã-Pinheirinho, aliviando a demanda ao longo do eixo Norte-Sul. E, finalmente, o grande presente da Linha Verde para a cidade: a criação de um parque linear de grande importância ecológica que transforma as arestas da modernidade num quase boulevard. Na sua segunda fase, a de consolidação, seis novas transposições vão ligar os dois lados da cidade, permitindo um grande desenvolvimento a leste da Linha Verde. Trata-se das trincheiras verdes – uma nova manifestação da criatividade de Curitiba –, que vão possibilitar não só a travessia de veículos, mas também a de pedestres e ciclistas.

Numa próxima oportunidade, comentaremos as afirmações do artigo do Le Monde sobre o sistema de transporte de Curitiba.

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