No sábado de aleluia, algumas horas antes do domingo de Páscoa, o ministro do STF Kássio Nunes Marques, nos autos da ADPF 701, concedeu liminar que ordenou a suspensão de todo e qualquer decreto que proibisse a liberdade de culto em território nacional. A partir daí, choveram ataques à decisão. Tobias Barreto ensinava que, uma vez tomada a liberdade, mesmo que posteriormente devolvida, nunca mais seria no mesmo patamar. Ele tinha razão. É impensável ver a mídia em peso e, principalmente, juristas atacando Nunes Marques por uma decisão que preserva a liberdade. Alguns até manifesto em protesto organizaram. Basta raciocinarmos por alguns segundos para percebermos que alguma coisa está errada: protesto contra uma decisão que garante uma liberdade constitucional?
Precisamos lembrar que os supermercados e as farmácias estão abertos. Os ônibus e metrôs permanecem lotados enquanto igrejas são fechadas sob o argumento da aglomeração. Se as pessoas podem coletivamente permanecer nestes ambientes, muitas vezes menores e menos ventilados que os templos, por que as igrejas precisam permanecer fechadas? Aqueles que exigem o fechamento das igrejas desconsideram a sua importância para o fiel. O fiel pode realizar suas compras de comida e medicamentos pela internet ou telefone. A substituição é possível. Entretanto, não podemos dizer ao crente como ele deve cultuar a Deus ou menosprezar a importância sagrada que ele deposita em seu coração no ato de estar no templo.
Não é de graça ou à toa que a liberdade religiosa é garantida por todos os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos; entretanto, fazer compras no supermercado não aparece em quaisquer destes tratados. A importância de os fiéis terem sua liberdade religiosa garantida está exatamente em seu núcleo: o sagrado. Os norte-americanos denominam a liberdade religiosa como a primeira das liberdades pelo fato de que são nossas crenças que nos movem e nos orientam em todos os atos da nossa vida (foi em razão dela que os Estados Unidos foram colonizados).
A liberdade religiosa se caracteriza exatamente pelo fato de que não devemos interferir ou embaraçar o credo de outra pessoa. Se ela acredita que a única forma de cultuar a Deus se dá pelo culto público, quem são o Estado ou a Justiça para dizer que sua fé está errada? O que o Estado entende de fé? Se realmente vivemos em um Estado laico, muitas vezes conclamado pela mídia, como podemos dizer que manter o supermercado aberto é mais importante do que manter a igreja? Jesus Cristo ficou 40 dias sem se alimentar de pão, mas nem um dia sem falar com o Pai. Com esta afirmação alguém pode dizer: “OK, mas você pode falar com o ‘Pai’ em casa, ou assistindo a uma transmissão pelo YouTube”. Será? Como você pode saber disto? Você conhece o íntimo da alma de um fiel a ponto de dizer a ele como deve prestar culto a Deus? Presumo que não.
Isto é laicidade estatal: nem o Estado, nem nenhum órgão de sua estrutura pode dizer como e onde o ser humano exerce sua fé; inclusive é o teor do texto constitucional que elege a laicidade como modelo: “embaraçar-lhes o funcionamento”. Alguém haverá de argumentar: e se determinada fé ordenar que se sacrifique um bebê por ano nos cultos? Não entrando aqui no sacrifício de crianças no ventre exigido em uma ação no STF (ADPF 442), obviamente o Estado deve interferir em qualquer crença que objetivamente atente contra a dignidade da pessoa humana e o bem comum. A religião deve se mover em prol do bem comum das pessoas, assim como o Estado. Os caminhos pelos quais se movem são diferentes: o Estado trilha o caminho temporal; a Igreja, o caminho espiritual. Entretanto, tais caminhos se cruzam quando a Igreja auxilia o Estado em calamidades como Brumadinho e quando o Estado auxilia a Igreja, isentando-a do recolhimento de quota patronal no pagamento da remuneração de seus líderes.
E não seria atender o bem comum proibir cultos na pandemia? Não. Principalmente quando mais de 80% da população é cristã. Proibir o culto é um atentado contra o bem comum da sociedade brasileira; por outro lado, limitá-lo é uma resposta para esta pergunta. No direito constitucional brasileiro não existe previsão nenhuma de restrições à liberdade religiosa, mas, devido à situação extraordinária em que vivemos, somada à permissão do artigo 18, 3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, tratado que o Brasil é signatário, as restrições de teto de ocupação do templo, entre todas as medidas sanitárias e de biossegurança, são necessárias e se harmonizam com o sistema de proteção à vida e a dignidade da pessoa humana.
A garantia de que as pessoas exerçam sua crença por meio dos cultos e demais cerimônias litúrgicas decorre da liberdade pública e coletiva do culto, indispensáveis à dignidade e à vida destas pessoas. As restrições impostas podem criar embaraços para esta liberdade pública, mas são restrições razoáveis e adequadas para impedir o aumento do contágio. A proibição, porém, não é razoável e muito menos adequada. Proibir é prejudicar a vida e a dignidade de fiéis que não podem viver sem o pão do espírito, distribuído na liturgia do culto, dentro da nave do templo. Ao ministro Nunes Marques nosso “obrigado” por recompor a justiça e os valores constitucionais de proteção às liberdades, à vida e, principalmente, à dignidade da pessoa humana.
Thiago Rafael Vieira é advogado, coautor de “Direito Religioso: questões práticas e teóricas”, colunista da Gazeta do Povo e pós-graduado em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa, com estudos nas universidades de Coimbra e de Oxford.
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