O projeto do “Estatuto de Controle de Armas de Fogo”, que revoga o Estatuto do Desarmamento e flexibiliza restrições para a posse e o porte, não tem nada a ver com a proteção da vida humana.
Sua perspectiva de aprovação deve ser compreendida no contexto de fragilidade institucional do país e do oportunismo de setores do mercado. Não se trata de discutir segurança pública ou direito à autodefesa: trata-se apenas de negócios. Não é à toa que dados oficiais do TSE indicam a doação de valor próximo a R$ 3 milhões a candidatos e comitês partidários, apenas nas últimas eleições, por parte de grandes empresas do ramo.
É por isso que espanta a facilidade pela qual tantos embarcam com ingenuidade no discurso sedutor segundo o qual todo “cidadão de bem”, diante da ineficiência do Estado, tem o direito de andar armado para se defender dos “bandidos”.
Transformar as relações sociais em um permanente faroeste em potencial não é a medida mais inteligente, muito menos eficaz
Apenas demagogia, incapaz de se sustentar em suas próprias premissas. A distinção entre “bandidos” e “cidadãos de bem” não passa de retórica vazia: atiradores em shoppings e escolas, por exemplo, eram todos “cidadãos de bem” até fazerem o que fizeram. Ou “bandido” seria quem tem inquéritos policiais ou processos criminais em andamento? Pois uma das alterações propostas derruba a restrição ao porte de armas hoje existente justamente para esses casos! É evidente que o princípio da presunção de inocência deve ser defendido sempre, mas é impossível não se estarrecer com a incoerência entre o discurso e o que o projeto propõe. Esperemos que a presunção de inocência seja lembrada também na hora de atirar contra o próximo a quem defino como ameaça, e não sirva apenas como regra de ouro para vender mais armas e munições.
É comprovado que boa parte dos homicídios decorre de atos impulsivos, sem premeditação, desdobramentos infelizes e trágicos de brigas de bar, no trânsito ou em casa. O debate honesto deverá admitir, nesse sentido, que a redução da disponibilidade e do número de armas de fogo em circulação é diretamente associada à redução das mortes violentas. Se continuam a circular nas mãos de organizações criminosas, o que se há de fazer é combater o tráfico de armas e suas causas, valorizando e buscando um novo papel à polícia dentro da democracia. Transformar as relações sociais em um permanente faroeste em potencial não é a medida mais inteligente, muito menos eficaz.
Legítima defesa não é um direito em abstrato, mas sim uma situação muito específica que autoriza o sujeito a agir com violência no caso de injusta agressão atual ou iminente, e apenas na medida necessária para tanto. Pressupor que devemos sair às ruas prontos para, a qualquer momento, agir em legítima defesa significa dizer que há uma ameaça em cada esquina, em cada vizinho, em cada cidadão: é o sepultamento da cidade, do espaço público, da cidadania, em prol de uma sociedade fundada no medo e em uma filosofia pseudo “anarcoliberal” de radicalização do individualismo.
A primeira arma aos 21 anos, presente para o filho. Cinquenta balas por mês, até nove armas em casa. Ocorre que não há salvação para a segurança pública sem o resgate do espaço público e de políticas que valorizem a convivência e a coexistência. A banalização da violência significa a vitória desta última, não seu combate. Como canta O Rappa, afinal, também morre quem atira.