Em data recente, o presidente Jair Bolsonaro demitiu de suas funções administrativas os generais Franklinberg de Freitas, Santos Cruz e Juarez Cunha. De acordo com informações que circularam nos meios de comunicação, o primeiro, que era presidente da Funai, foi exonerado porque disse que o dirigente da nação se encontra mal assessorado na questão indígena, e que está ocorrendo uma má influência do ruralista Nabhan Garcia, que ocupa o posto de secretário de Política Agrária do Ministério da Agricultura. O segundo, até então ministro da Secretaria de Gorverno, se manifestou contra o financiamento de blogs e sites favoráveis ao governo, medida apoiada por um dos filhos do presidente e pelo chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência. Também discordou em relação ao volume de investimentos em publicidade sobre a reforma da Previdência. O terceiro, que era presidente dos Correios, porque defendeu a não privatização da estatal, por ele considerada autossustentável e insubstituível. Externou, ainda, que, se sua parte lucrativa for vendida, ela não terá condições de sobreviver.
Embora atuando em setores diferentes da administração pública federal, os três oficiais foram dispensados dos respectivos cargos de chefia pelo mesmo motivo: reações de discordância em relação às diretrizes governamentais estabelecidas para cada um destes setores e divulgadas pelos órgãos informativos. Parece razoável supor que esta decisão repentina mostra a estreiteza intelectual, o apego a concepções altamente questionáveis, a repugnância pelo dissenso e a carência de comedimento emocional por parte do agente dispensador. Observe-se mais um fator em comum nos três casos: os generais citados podem ser vistos como desconsideradores dos princípios de hierarquia e disciplina que são os pilares básicos da organização militar, porquanto apresentaram suas divergências às linhas políticas norteadoras fixadas ou endossadas pelo primeiro mandatário do país.
A liberdade de expressão como regra norteadora da conduta militar, colocada acima dos princípios da hierarquia e da disciplina, já está concretizada em muitos países desenvolvidos
À primeira vista, as ocorrências em questão parecem evidenciar para qualquer pessoa que realmente foram exibidas condutas que ultrapassaram os princípios castrenses fundamentais, e que não são toleradas em hipótese alguma no âmbito dos quartéis. Aos olhos de muitos civis, e também de boa parcela dos militares, os generais mencionados foram dispensados de seus postos porque manifestaram reações divergentes em desobediência aos imperativos da hierarquia e da disciplina. O pressuposto deste entendimento é o de que tais princípios, por serem os mais relevantes da organização bélica, são invioláveis e pairam acima de qualquer outro. No entanto, este pressuposto pode não ser verdadeiro.
Se recorrermos à nossa Constituição Federal, verificaremos que no inciso IV do artigo 5.º, referente aos direitos e deveres individuais e coletivos, encontra-se redigido que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato". Note-se que esta expressão escrita não diferencia civis e militares, pois, se instituísse tal diferenciação, colocaria os funcionários fardados como cidadãos de segunda categoria. Assim sendo, é possível asseverar que os generais mencionados não desconsideraram os princípios da hierarquia e disciplina, e sim agiram de acordo com o princípio da liberdade de expressão que se encontra acima dos imperativos castrenses fundamentais.
No decorrer do tempo, inclusive em datas mais próximas aos dias de hoje, militares foram alertados e punidos por emitirem opiniões consideradas incompatíveis com a hierarquia e a disciplina, tendo por base o regulamento militar em vigor. Vale lembrar que este documento não se mostra consoante à atual Constituição; ao contrário, é compatível com a Constituição anterior, aquela que vigorou no período político de ocaso da democracia. Frente a esta dissonância, e visando superá-la, o atual deputado Capitão Augusto apresentou, neste ano, projeto de lei que "altera o art. 9.º do Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969, Código Penal Militar, para dispor sobre o direito de manifestação do pensamento do militar". O parágrafo 2.º do artigo 9.º regulamenta tal direito em três incisos. Nas justificativas apresentadas, o parlamentar cita que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que "este direito de livre manifestação estende-se aos militares na sua plenitude". Menciona, também, que nosso país é signatário de tratados internacionais que "garantem de forma ampla, geral e irrestrita, aos civis ou militares, a liberdade de expressão, proibindo qualquer forma de registro, licença ou censura". Derradeiramente, acrescenta que o direito de se expressar livremente não pode ser proibido ou cerceado "sob o pretexto de segurança nacional ou hierarquia e disciplina".
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Portanto, além de não terem violado os princípios básicos da instituição castrense, os personagens citados puseram em prática aquilo que interiorizaram nos cursos de graduação, pós-graduação, nos estágios e nas viagens proporcionados pelas escolas militares, além da experiência profissional. Nesta extensa caminhada pedagógica, aprenderam a divergir adequadamente, a apresentar ideias próprias, sugestões alternativas e propostas originais, a exibir atitudes de iniciativa e protagonismo, a buscar nos subordinados hierárquicos as ideias que podem contribuir para o processo de tomada de decisão, uma manifestação comportamental que mostra aos comandados que eles devem, sempre que possível, apresentar sugestões aos problemas emergentes. Aprenderam, ainda, a colocar em prática seus conhecimentos, a manifestar a necessária responsabilidade exigida pelas funções ocupadas e, principalmente, exibir o devido respeito à coisa pública.
A liberdade de expressão como regra norteadora da conduta militar, colocada acima dos princípios da hierarquia e da disciplina, já está concretizada em muitos países desenvolvidos. Note-se, porém, que, apesar de a livre manifestação do pensamento se mostrar regrada tanto para os militares quanto para os civis, para os primeiros as regras tendem a ser mais severas por causa das especificidades da profissão das armas. Nos Estados Unidos, os servidores fardados não podem encorajar o emprego da violência a não ser nas operações bélicas; não podem incentivar o desrespeito aos regulamentos militares; não podem se comunicar com o inimigo; não podem usar expressões ofensivas contra as autoridades; e não podem empregar a fala ou a escrita para denegrir as Forças Armadas. Na Bélgica, os militares podem se sindicalizar e, no âmbito dos sindicatos, podem se manifestar livremente, inclusive para reivindicar benefícios profissionais; no entanto, estão proibidos de fazer greve.
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Em Israel, a conduta dos militares é regrada por um código de ética denominado Ruach Tzahal . Segundo este código, nada pode impedir que eles exponham suas opiniões em qualquer tipo de assunto. No desenvolvimento de suas atividades profissionais, eles não só podem como devem emitir seus pontos de vista com convicção, coragem, honestidade e franqueza. Entretanto, os mesmos devem tomar todos os cuidados possíveis ao se manifestar sobre questões sujeitas a controvérsia pública de natureza política, social e ideológica.
Seguindo o exemplo desses países, é esperável que o citado projeto de lei, em tramitação no parlamento, venha a ser aprovado o mais rápido possível para reforçar o direito de liberdade de expressão dos militares brasileiros, desde o soldado raso até os generais, bem como estimulá-los a exercê-lo em função das regras previstas, tanto no interior da caserna quanto fora dela.
Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutor em Educação e autor de Democracia e ensino militar.
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