| Foto: Fabio Abreu
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Como um liberal clássico de longa data e presidente do Conselho do Instituto Liberal, tenho me preocupado bastante com a tentativa da esquerda de usurpar o termo liberalismo para si, após o fracasso petista. Cada vez mais tucanos se dizem liberais sem muito critério ou respaldo histórico, e quando esses “progressistas” precisam apontar ícones do liberalismo, não falam em Reagan ou Thatcher, mas sim em FHC e Obama. Querem fazer no Brasil o que a esquerda fez nos Estados Unidos.

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Sou tão preocupado com esse risco que escrevi todo um livro sobre o assunto, tentando resgatar o verdadeiro liberalismo dos pseudoliberais de hoje. Mas e se o liberalismo “progressista” que monopolizou o conceito nos Estados Unidos não for apenas um desvio, um pêndulo que extrapolou para a esquerda, e sim um resultado quase inevitável das premissas adotadas pelos liberais? Claro que isso seria bem mais grave para um liberal como eu.

É o que defende, porém, Patrick Deneen no livro Why Liberalism Failed. No jovem século 21, a democracia liberal, o sistema que combina o governo da maioria com os direitos individuais, entrou em uma crise de legitimidade, e isso é inegável. Os sintomas desta doença são fáceis de observar: uma distorção crescente na distribuição da riqueza; decadência nas instituições tradicionais, das associações cívicas aos sindicatos trabalhistas e à família; uma perda de confiança na autoridade – política, religiosa, científica, jornalística – e entre os próprios cidadãos; crescente desilusão com o progresso na realização de justiça igual para todos; acima de tudo, talvez, a persistente e crescente polarização entre aqueles que desejam sociedades cada vez mais abertas e experimentais e aqueles que desejam conservar várias instituições e práticas tradicionais.

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Deneen é um crítico radical, argumentando que o liberalismo não precisa de reformas, mas sim de aposentadoria. O problema não é que o liberalismo tenha sido sequestrado, diz, mas que sua obsessão exagerada com a “autonomia individual” estava errada desde o início, e a passagem das décadas apenas tornou seu erro mais evidente.

De acordo com os entendimentos antigos e cristãos, a liberdade era a condição de autogoverno, fosse alcançado pelo indivíduo ou por uma comunidade política. Como o autogoverno era alcançado apenas com dificuldade – exigindo uma ampla habituação à virtude, particularmente autodomínio e autodisciplina sobre apetites básicos, mas insistentes –, a conquista da liberdade exigia restrições à escolha individual. Tanto que Tomás de Aquino considerou o costume uma forma de lei, e muitas vezes superior à lei formalizada, tendo o benefício de um consentimento de longa duração.

O liberalismo concebe a liberdade como o oposto dessa concepção mais antiga. É entendido como a maior liberdade possível de restrições externas, incluindo as normas costumeiras. O liberalismo, portanto, desmonta um mundo de costumes e o substitui pela lei promulgada, com base somente em argumentos supostamente racionais. Ironicamente, à medida que o comportamento se torna desregulado na esfera social, o Estado deve ser constantemente ampliado por meio de uma expansão das atividades legislativas e regulatórias. “O Império da Liberdade” se expande rapidamente com uma esfera cada vez maior de controle estatal.

Na maioria das vezes, o que é chamado de “democrático” são as políticas e políticos que estão de acordo com os compromissos liberais – independentemente de obterem o apoio de uma maioria democrática. Assim, muitas vezes encontraremos condenações de vitórias eleitorais “populistas” como antidemocráticas. O que é sinalizado aqui é o esforço do liberalismo para manter a aparência de legitimação democrática, mesmo em meio a evidências de que a democracia não o apoia mais. Temos outro paradoxo: o “liberalismo” arrogante e autoritário, que despreza o povo.

Como Montesquieu apontou faz tempo, a democracia é o regime mais exigente, dadas suas demandas por virtude cívica. O cultivo da virtude requer a presença densa de instituições formadoras e sustentadoras da virtude, mas essas são precisamente as instituições e práticas que o liberalismo visa a esvaziar em nome da liberdade individual. Esta, porém, não sobrevive num vácuo de valores morais, que fomentam o espírito cívico e a decência.

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Uma característica central da filosofia liberal e da política é o reconhecimento da arbitrariedade de quase todas as fronteiras. Fronteiras e limites baseados na geografia, história e natureza devem ser cada vez mais apagados sob a lógica do liberalismo. O liberalismo moderno levou ao globalismo, outro paradoxo, já que significa uma espécie de “governo mundial” moldado de cima para baixo, incompatível com o princípio de subsidiariedade que sempre esteve presente nos primórdios do liberalismo.

O livro procura mostrar que o que é lamentado pela direita não se deve à esquerda, mas às consequências de seus próprios compromissos mais profundos, especialmente para a economia liberal. O debate é importante, pois se for convincente a ideia de que o “liberalismo” que vemos hoje, algo totalmente desfigurado em relação ao que os clássicos defenderam, for um resultado direto de suas próprias premissas levadas ao extremo, e não um “sequestro” pela esquerda, então os liberais serão forçados a rever suas premissas para salvar o próprio liberalismo e o que ele efetivamente prega: as liberdades individuais.

Em nome delas, os atuais “liberais” querem cada vez mais apagar fronteiras nacionais, destruir tradições, desafiar tabus e tratar os costumes como um resquício obscurantista a ser ultrapassado. A autonomia virou um subjetivismo insano que nega até a ciência, e cada um tem o “gênero” que julgar adequado aos seus sentimentos. A “tolerância” virou sinônimo de uma ditadura do politicamente correto que asfixia a liberdade de expressão em nome do combate ao “discurso de ódio”. Enfim, o tiro saiu pela culatra, “deu ruim”, como dizem.

Talvez a única maneira de salvar o liberalismo, as democracias liberais do Ocidente, seja mesmo uma união com os conservadores, pelo resgate de certos valores morais que seriam imprescindíveis para a sobrevivência da própria liberdade individual.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.

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