| Foto: Rodrigo Galindo/Free Images

A Nota Técnica 11/2019, advinda da Coordenação Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde, tem sido alvo de uma polemização desnecessária na imprensa. Como sabemos, o público não especializado não costuma se ater à leitura integral de documentos técnicos, submetendo sua atenção aos resumos da norma, que por sua vez são sensacionalizados pela publicação enviesada e seletiva de partes do texto, muitas delas mal interpretadas (talvez intencionalmente).

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Como exemplo, temos lido que a nota é um instrumento de resgate dos chamados “manicômios”, com retorno de uso de “eletrochoques” e “internamento e abandono de crianças”. Nota-se claramente uma manipulação da informação, na tentativa de criar uma atmosfera de iminência de retorno de práticas manicomiais e asilares atualmente proscritas, completamente indesejadas e contraindicadas na terapêutica do paciente portador de transtornos mentais.

Em uma análise não passional e despolitizada da nota técnica, observa-se um documento que evita qualquer priorização de um ou outro serviço dentro da rede de atenção psicossocial. Em vez do enfoque em hospitais psiquiátricos, como muitas vezes foi noticiado, temos a inauguração de um sistema que dá extrema importância a ferramentas de tratamento de característica setorial, humanizada e focada na atenção individual ao doente e na sua ressocialização.

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A literatura mundial não deixa dúvidas sobre a eficácia da eletroconvulsoterapia em casos especialmente refratários

Um exemplo disso é o ressurgimento do atualmente extinto ambulatório de saúde mental, com o cuidado de promover unidades multiprofissionais, ou seja, o paciente deverá contar com psicólogos, assistentes sociais e médicos ao seu dispor para consultas de acompanhamento em intervalos regulares de tempo (geralmente mensais). Este, ao meu ver, é o melhor meio de manter o paciente socialmente ativo e livre de sintomas.

Além disso, a nota prevê a ampliação de serviços residenciais terapêuticos, cujo objetivo é extinguir por completo a antiga cultura do asilamento, buscando a desinstitucionalização dos pacientes; a criação de unidades de acolhimento de vulneráveis (doentes que se encontram nas ruas ou egressos de prisões) e que não têm suporte social ou familiar; e a inclusão das comunidades terapêuticas na rede de assistência – tais comunidades são responsáveis, há anos, pelo tratamento de milhares de dependentes químicos, e agora passam a receber auxílio e sofrer auditorias contínuas para manutenção de qualidade. Também há o fortalecimento da rede de Caps e hospitais-dia, além da criação dos Caps AD 4, com funcionamento integral e médico de plantão 24 horas, em locais de risco como cracolândias.

Especificamente em relação aos hospitais psiquiátricos, é necessário enfatizar que sua existência é obrigatória em respeito à Lei 10.216/01, segundo a qual o paciente deve ter o tratamento correto, consentâneo às suas necessidades. Portanto, nos diversos casos em que a internação do indivíduo protege a sua vida ou de seus próximos, o mesmo deve ser internado em unidade de atenção em tempo integral. O período de internamento deve ser o mais curto possível, visando unicamente a supressão do quadro agudo de risco, e seguido por tratamentos ambulatoriais. Aliás,um dos pontos fortes da nova diretriz é integrar a psiquiatria ao modelo médico tradicional de tratamento. O internamento psiquiátrico poderá ser realizado em enfermarias especializadas dentro de hospitais gerais, contando com equipe multiprofissional e seguindo protocolos modernos. Para tanto, o valor das diárias de internamento sofreu correção após nove anos de defasagem, objetivando evitar más condições de atendimento devido a parcos recursos financeiros, um problema dos atuais hospitais psiquiátricos ainda ativos.

Leia também: Reestruturação da rede de saúde mental (artigo de Márcia Huçulak, Flávia Quadros e Flávia Adachi, publicado em 9 de outubro de 2017)

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Leia também: Por que o sistema público de saúde mental não consegue impedir massacres (artigo de Amy Barnhorst, publicado em 22 de fevereiro de 2018)

Quanto à eletroconvulsoterapia, rotulada na mídia como “volta do eletrochoque”, a nota deixa claro o financiamento da compra do aparelho visando tratamento de “ determinados transtornos mentais graves e refratários a outras abordagens terapêuticas”. Nós, clínicos da saúde mental, sabemos que tais situações de refratariedade são raríssimas. Entretanto, há pacientes cujo nível de gravidade da doença merece todos os métodos de tratamento com sólida comprovação científica. No caso da eletroconvulsoterapia, a literatura mundial não deixa dúvidas sobre sua eficácia em casos especialmente refratários.

A mesma situação ocorre em outro ponto sobre o qual se criou polêmica, o internamento de crianças. Há a necessidade de tratamento integral em casos raros, porém muito graves. Epidemiologicamente, nota-se o aumento de transtornos psiquiátricos importantes em crianças – automutilações, tentativas de suicídio, psicoses ou dependência de crack e outras drogas. Há necessidade, portanto, de preservação da vida dessas crianças. O internamento, nesse caso, não se dá em unidades comuns para adultos, mas sim em unidades especializadas em psiquiatria da infância e adolescência, uma sub-área da psiquiatria geral. Lembro que, invariavelmente, as crianças que têm indicação médica de internação psiquiátrica não têm suporte social; caso contrário, poderiam ser acolhidas em regime de Caps infantil associado a internamento domiciliar.

Não podemos olhar os transtornos mentais de maneira simplificada ou romantizada. Vivemos uma epidemia de sofrimento mental, com um suicídio a cada 40 segundos no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. A nota técnica do Ministério da Saúde é uma tentativa de tratar com justiça e respeito o paciente, por meio de uma visão lúcida das necessidades brasileiras, fruto de minucioso estudo realizado pela Coordenação Nacional de Saúde Mental. Sem dúvida, é um ponto de partida para um futuro de mais respeito ao cidadão portador de transtornos mentais.

Ricardo Manzochi Assmé, médico psiquiatra, é diretor-secretário da Associação Paranaense de Psiquiatria.