Tramita no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário 855178 – SE, em que a União retoma o tema da solidariedade dos entes federados em relação ao fornecimento de medicação no Sistema Único de Saúde. A questão foi reconhecida como de repercussão geral (baliza para todas as decisões das várias instâncias do Poder Judiciário) e o plenário virtual da Casa, por maioria de votos, entendeu, no mérito, em não prover o recurso. A União opôs embargos declaratórios com efeitos infringentes do acórdão, a ser decidido pelo Pleno do mesmo tribunal, agora, em sessão pública.
O julgamento dos embargos teve início no dia 5 de agosto, com voto do relator, fulminando o recurso e com pedido de vistas pendente. A continuação do julgamento está pautada para esta quarta-feira, dia 16.
A questão é recorrente. Embora o STF já tenha posição firmada há muito tempo, reconhecendo a solidariedade da União, estados-membros, Distrito Federal e municípios nas ações e serviços de saúde para a cidadania como um todo, a embargante, sob o argumento de que o resultado seria outro caso o STF tivesse se manifestado sobre a totalidade de suas alegações, busca modificar o julgado.
A proposta formulada pela Defensoria Pública da União – sistema de compensação entre os entes federados – é razoável
É sabido que tais embargos ordinariamente se prestam a sanar dúvidas, omissões e contradições das decisões de mérito. Excepcionalmente, se o defeito é reconhecido e este reconhecimento afeta o resultado da causa, altera-se a solução do processo, sendo apto o recurso para tanto. Daí o seu caráter infringente, modificativo do que foi decidido.
Contudo, o entendimento é pacífico no sentido de que as pretensões podem ser fulminadas sem que haja necessidade de pronunciamento sobre tudo o que for alegado. Aqui, isso é reforçado porque a solidariedade decorre da própria configuração do SUS, a saber, entre outros: é um sistema nacional, com custo compartilhado entre os entes da federação; deriva de uma política pública de corte constitucional; é consagrado como direito de cidadão e dever do Estado, revestido da índole universal, gratuita e, sobretudo, pela transversalidade, a ser observada em todas as políticas públicas, por mais específicas que sejam. Não é à toa que a Constituição Federal atribui às ações e serviços de saúde a condição de relevância.
Assim, é curial que tais predicados não possam nem devam ser afastados por um entendimento simplificador de que, por efeito de descentralização, se consumaram pactos entre os entes federados, com atribuições e responsabilidades de parte a parte, desresponsabilizando, cada qual, do atendimento além do que se comprometeu. Sob pena de, no limite, o usuário do SUS ser penalizado se houver descumprimento de obrigações pactuadas que cabiam a um ente, no caso, que não a União.
Embora reconhecida a solidariedade, há um vazio ( talvez devesse ser essa a omissão a ser atacada pelos embargos): como torná-la viável preservando o que foi pactuado, mormente pelo efeito vinculante, no plano judicial, da repercussão geral. Não basta reconhecê-la; há de se instrumentalizá-la. Para isso, considere-se a existência de um catálogo de ações e serviços de saúde, pactuado entre os entes federados, e que a judicialização de sua exigência ocorre, na maioria dos casos, pelo não atendimento dessas obrigações; excepcionalmente se busca, em juízo, a realização ou obtenção de alguma prestação fora desse rol ou de algo que se considere inadequado para o agravo de saúde.
A proposta formulada pela Defensoria Pública da União – sistema de compensação entre os entes federados – é razoável porque, se a repartição de tais obrigações do SUS resulta de acordo entre eles, um mecanismo de acerto de contas pode ser perfeitamente concretizado: cada atendimento que extrapolar o que cada um ajustou e for por ele satisfeito acarreta em um crédito a ser compensado entre os fundos de saúde de quem prestou a assistência e o de quem deveria prestá-la. Assim, se for obrigação da União e o estado-membro ou o município vier a satisfazê-la, o respectivo fundo de saúde será ressarcido no mês seguinte pelo fundo nacional de saúde; se inadimplente o estado-membro ou o município, com oneração da União, o fundo nacional de saúde se creditará, debitando nos repasses que obrigatoriamente cabe a um ou ao outro; se a prestação for de responsabilidade do estado-membro, custeada pelo município, este será creditado pelo fundo estadual de saúde no seu respectivo fundo; se o inverso, o município será debitado no fundo municipal de saúde, nas verbas que tem a receber obrigatoriamente do estado-membro. No caso de ações ou serviços caracterizados como excepcionais, cabe o ônus à União, porquanto ela é quem mais arrecada recursos, no universo dos tributos, inclusive com alguns deles que não são obrigatoriamente repartidos entre os estados-membros e outros que, em tese catalogados dentre os obrigatórios, são inexigíveis, porcentualmente, por força do mecanismo de Desvinculação de Receitas da União (DRU). Rigorosamente, não há qualquer óbice a que o Poder Judiciário preencha este vazio, como consequência do reconhecimento da solidariedade, à míngua de iniciativa dos gestores públicos em saúde.
Uma outra alternativa é a de que o próprio Poder Judiciário disponha de recursos orçamentários, autônomos, para satisfazer as demandas, com rubrica expressa nos fundos de saúde, a ser movimentada, a débito ou a crédito, por determinação judicial. Para permitir a continuidade do procedimento, sempre que houver o esgotamento de tais verbas, no exercício da sua independência enquanto Poder do Estado, e autonomia financeira, o Judiciário encaminhará ao respectivo parlamento o pedido de abertura de crédito extraordinário ou determinará ao fundo de saúde deficitário o remanejo de verbas para suprir eventual inexistência de recursos.
Para tudo isso, impõe-se que periodicamente o Poder Judiciário seja abastecido com o que cabe a cada um dos gestores públicos na repartição das ações e serviços de saúde, encaminhadas ou pelo Poder Executivo ou pelos respectivos Conselhos da área.
O assunto, por sua complexidade, determina o exame de uma questão polêmica: onde o cidadão pode propor a sua demanda, caso não atendido na instância administrativa? Se adotado o sistema compensatório, ele pode ajuizá-la em qualquer foro, seja na Justiça Estadual, seja na Justiça Federal. Basta ao juiz da causa, ao identificar quem é o responsável no elenco de ações e serviços de saúde, ordinária ou excepcionalmente, e se o pedido for feito contra ente federado não incluído no âmbito de sua competência ou que não pactuou a obrigação de satisfazê-la, determinar o atendimento pela parte demandada, debitando o valor desembolsado ao fundo de saúde do ente responsável que deixou o usuário sem o atendimento.
Finalmente, pela relevância do tema, poderia o STF ir além da repercussão geral, com edição de súmula vinculante sobre o tema, alargando a cogência de sua decisão a todos os poderes que lidam com ações e serviços de saúde.
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