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“De certa maneira, a visão de mundo do Partido era adotada com maior convicção entre as pessoas incapazes de entendê-la. [...] Graças ao fato de não entenderem, conservavam a saúde mental.” (George Orwell, 1984)
Esqueça diplomas, eleições e concursos públicos. A fórmula de ingresso neste novo poder é mais abstrata do que isso. Não requer apenas conhecimento técnico, mas compromisso com a causa.
O Poder Covidiário é composto por prefeitos, governadores, juízes, jornalistas, ex-juízes, ex-jornalistas, intelectuais, ex-intelectuais, comentaristas de futebol, cantoras de funk, personalidades de diferentes áreas e, pasme, até mesmo por alguns dos seus vizinhos mais esnobes. Não se trata de um círculo restrito, mas de uma roda viva disposta a abrigar todo aquele disposto a sinalizar virtudes transcendentais, utilizar belas frases, combater genocidas imaginários e, principalmente, afirmar que sua preocupação é com as vidas, apesar de suas ideias ignorarem diversas necessidades básicas de seres humanos vivos.
Nas fileiras do Covidiário, as armas de guerra são inúmeras e variam de acordo com a “função social” que cada membro exerce no “mundo exterior”. Alguns disparam sentenças judiciais arbitrárias e incontestáveis. Outros, mais perigosos, utilizam diferentes plataformas para transformar histeria em sabedoria, e maquiar a pura e simples ignorância dos fatos como um baluarte nacional de bom senso. Estes últimos precisam, devido à natureza do seu armamento, infiltrar-se gradativamente em território inimigo. A princípio, afirmam que buscam apenas “achatar curvas”, lamentam os transtornos em prol “do bem comum” e postam conselhos fofos para nos ajudar a “passar por mais essa”. Com o tempo, no entanto, a real natureza dos seus propósitos começa a se tornar indisfarçável.
O Poder Covidiário fala sobre intenções temporárias, mas tem propósitos eternos. Seu maior perigo reside no fato de que seus membros estão dispostos a fazer de tudo para salvar a sua vida, nem que, para isso, seja preciso matá-lo.
Esqueça a lógica, o bom senso, o método científico ou outros conceitos nazifascistas como liberdade e indivíduo. O Covidiário é coletivista, cientificista e, claro, lacrador. Ele vence o debate antes mesmo de comparecer ao local combinado. Ele é bom pelo simples fato de existir, e só existe porque é bom.
Seu êxito consiste no aparelhamento do mais precioso de todos os temas deste mundo caído. A politização da morte era a última fronteira a ser conquistada pelos inimigos da vida. Não mais. Se estivessem falando sobre “igualdade”, “distribuição de renda” ou “dívidas históricas”, ainda haveria gente corajosa o suficiente para contradizê-los, mas, se é para salvar vidas, que tipo de maníaco pode ser contrário a medidas como toques de recolher, fechamento de igrejas, prisão de vendedores ambulantes, interdição de praias, instalação de barreiras em vias públicas e divulgação obrigatória do seu prontuário médico?
A distopia se torna mais sólida quando refletimos sobre o fato de que tomar uma vacina transformou-se em um evento social regado a selfies, lágrimas e divulgação ostensiva. Nada mais compreensível se tal vacina fosse a tão sonhada cura para o vírus chinês, mas, infelizmente, esta não parece ser a realidade, pois os mesmos que dizem “Vacina sim!” (como se em algum momento alguém houvesse gritado “Vacina nunca!”) são aqueles que, com ar solene, alertam: a vacina não garante nada. Você precisa continuar a se distanciar, usar máscaras de tecido, evitar aglomerações e obedecer às restrições do Poder Covidiário.
Neste ínterim, não ouse minimizar a relevância da vacina. Ela não garante nada, mas é de vital importância. Portanto, neste ínterim, não ouse minimizar a relevância da vacina. Ressaltamos que ela não garante nada, mas é de vital importância. Portanto, neste ínterim...
Membros do Poder Covidiário ainda não têm carteirinha – embora, conhecendo alguns deles, haja a certeza de que sindicatos e clubes serão fundados em breve –, mas não é difícil identificá-los. Eles gritam “Viva o SUS!” embora possuam excelentes planos de saúde. Eles se espantam com o fato de que “os hospitais estão lotados” como se tal realidade fosse uma surpresa para o cidadão médio usuário do SUS, que com toda a certeza tem um parente que passou semanas no corredor do hospital, um conhecido que morreu à espera de uma cirurgia simples e uma vizinha cujo parto teve complicações porque o médico tentou até o fim evitar uma cesárea.
Esta, aliás, é a síntese do Pensamento Covidiário: a saúde pública é de graça, independentemente dos impostos que você paga para custeá-la. Não importa se ela é péssima, seja grato. “Ainda bem que a natureza criou este monstro chamado coronavírus” para que você pudesse dar valor ao Estado e saudasse todo profissional da saúde como “herói”, não obstante o fato de que alguns deles são especialistas em tratamento desumanizado, salários inflacionados, plantões fictícios e, mais recentemente, “vacinas de vento”.
Nada disso importa, pois, para o Poder Covidiário, o passado é relativo. Os milhões de vídeos que relatam o colapso eterno do SUS não existem ou deveriam ser apagados pelo Ministério da Verdade. Da mesma forma, a existência de outras doenças também precisa ser solenemente ignorada, ao menos por enquanto, por respeito aos mortos.
Eles choram lamentando a perda de mais de 400 mil brasileiros. De fato, cada vida é insubstituível, e aqui não reside nenhum traço de ironia. Cada perda é uma tragédia infinita por si só. Passaremos a vida inteira lamentando a ida daqueles que amávamos. O curioso é que, enquanto estes mais de 400 mil brasileiros estavam vivos, o Poder Covidiário não parecia se preocupar com... a sua vida! Nunca os vi lutar pela qualidade de vida, pela dignidade, pela oferta de uma educação realmente eficaz, pela diminuição dos impostos, pela liberdade dessas pessoas. O governador que hoje chora é o mesmo que sucateava hospitais. O prefeito que hoje diz que cada vida importa costumava comprar votos por R$ 100. O professor universitário que afirma que a volta às aulas é um genocídio há mais de 30 anos usa os mesmos slides ultrapassados e nem sequer conhece a maioria de seus alunos pelo nome.
A verdade é que, enquanto estavam vivos, muitas das vítimas da Covid-19 eram um transtorno para os Covidiários, que nunca hesitaram em classificar sua fé como “fanatismo”, seus ideais como “preconceito” e seus gostos pessoais como “ignorância”. Os mesmos que desprezavam a igreja à qual muitos dos mortos iam, as crenças que muitos dos mortos tinham e o trabalho suado que muitos dos mortos batalhavam para manter hoje afirmam ser os únicos a entender a real dimensão da tragédia.
É como se sua casa tivesse paredes de vidro e o vizinho, que viu pela janela que você passava fome, mas jamais bateu à sua porta com uma xícara de arroz, agora chorasse diante da Fátima Bernardes ao receber a notícia do seu falecimento por desnutrição e, de quebra, postasse nos stories do Instagram: “É inacreditável que pessoas ainda morram desnutridas no Brasil. Ninguém solta a mão de ninguém!”
O Poder Covidiário é o mais perigoso dos fenômenos recentes porque tenta monopolizar a virtude e não hesita em reescrever os fatos. A Argentina, que era um exemplo de apreço pela vida, é ignorada desde que ultrapassou o Brasil no ranking de mortes por milhão de habitantes. O Chile, que era um exemplo de vacinação em massa, não é citado desde que seus casos começaram a disparar. Já os EUA, que estavam indo para o fundo do poço sob o comando do “maníaco Trump”, agora são um exemplo para o mundo sob o comando de um simpático velhinho mascarado que continua deportando milhares de adultos e crianças, mas ao menos o faz com amor.
Os Covidiários sempre agem por amor. O perigo está nos genocidas que insistem em abrir seus comércios e pagar em dia o salário dos seus funcionários. O risco está naqueles que insistem em falar sobre voltar ao normal, quando deveriam adaptar-se ao “novo normal”. Será que não entendem que, pela saúde, “uma certa dose de autoritarismo é necessária”? E quem sabe deste processo de conscientização não nasça “uma sociedade mais consciente sobre as questões de gênero e raça”?
Reparou? Não é mais sobre a pandemia. É sobre a utopia que já levou centenas de milhões de pessoas à morte.
O Poder Covidiário é como o marido da Ivete Sangalo que, ao contrair Covid-19, culpou a cozinheira. “A Covid chegou por uma funcionária, uma cozinheira. O que a gente pode fazer a gente fez”, disse o rapaz em uma live.
Faz sentido. “Fique em Casa” para mim, “Cozinhe na minha casa” para você. Fazer o quê? É o preço que se paga para salvar vidas, é claro.
Arthur Vivaqua é pastor, teólogo e consultor de estratégia e marketing aplicados à educação.