Tem se tornado popular dizer que a dívida pública emitida em moeda local não tem limite e não precisa ser inflacionária. Essa é uma perspectiva interessante para países onde haja muitas coisas a serem feitas (todos?) ou que enfrentem uma insuficiência crônica de demanda, talvez por razões demográficas.
A proposta baseia-se em parte na revelação keynesiana de que o gasto público pode ajudar a reorganizar uma economia com capacidade ociosa. Ela foi muito oportuna nos anos 1930, quando os Estados Unidos, apesar do seu vasto estoque de capital e talento, enfrentavam alto desemprego depois do surto de crescimento da década anterior. Ainda há debate sobre o que teria causado aquela depressão, o que teria levado à desorganização da economia e qual o estrago feito pela contração da moeda a seguir. Para muitos, o otimismo com as inovações tecnológicas que massificaram os bens de consumo e as apostas nos mercados de capital levaram ao crash, cujos efeitos foram piorados pela resposta da política monetária e de crédito. Sem entrar em detalhes dessa discussão, parece bastante consensual que o mercado funcione em ciclos, e intuitivo que o Estado possa ajudar em momentos de crise.
O Estado saudável é a expressão da vontade coletiva. Ele pode se tornar disfuncional quando a sociedade não tem um diagnóstico correto dos problemas, e há casos de ele ser sequestrado por interesses particulares contrários à sociedade. Mas, há séculos, Confúcio e Hobbes ensinavam que o Estado, com seus defeitos e riscos, existe para organizar as atividades da sociedade e protegê-la.
A dívida pública e o crédito privado podem lubrificar as engrenagens da economia, especialmente quando há capital ocioso. Mas sua sustentabilidade depende da velocidade da sua expansão e do bom uso dos recursos
É seu efeito organizador, quando baseado em diagnósticos corretos, que permite ao Estado contribuir para dinamizar a atividade econômica. A dificuldade está em saber aplicar esse elixir. Para ilustrar o ponto, vale uma analogia com a dinâmica de uma família. Analogias desse tipo, que em geral informam que a família “não pode gastar mais do que ganha”, são um anátema para os economistas, porque elas falhariam em capturar aspectos essenciais da macroeconomia. Ainda assim, vale a pena tentá-la, cuidando em definir os contornos dessa família.
Um exemplo interessante seria de uma família composta por uma matriarca e vários filhos e filhas que tocam uma fazenda. A matriarca ficaria com o papel do governo em uma economia fechada. A dívida pública seria representada pela disposição dos filhos cederem parte dos seus esforços direta ou indiretamente para a realização de alguma tarefa que a matriarca indicasse (gasto público), em troca da promessa de ela lhes dar algo depois. Essa expectativa é tão mais forte quanto a convicção de que a matriarca tem o poder de, se necessário, impor, hoje ou no futuro, algum esforço de cada filho para poder honrar todas as promessas. Uma matriarca mais intervencionista poderia até estimular alguns filhos a fazerem coisas específicas prometendo mobilizar os recursos dos outros irmãos para esse fim, à semelhança da expansão do crédito público direcionado para “políticas de desenvolvimento”.
As promessas da matriarca provavelmente terão sucesso se, por exemplo, a fazenda andou abandonada, e elas servirem para coordenar o esforço para fazer a propriedade voltar a produzir, aproveitando o que existe. É a situação keynesiana ideal. Mas é fácil ver que essa rede de promessas tem limites. Se houver suspeita, por exemplo, de que uns (como os irmãos ainda crianças) receberão algo e não devolverão nada (quando crescerem), o ciclo pode quebrar, especialmente se a matriarca for parcial.
Mesmo com toda a boa vontade dos filhos e idoneidade nas promessas, há limites na produção de uma fazenda sob certa tecnologia, que, se forem excedidos, podem levar as promessas ao descrédito, o que seria comparável a uma crise na dívida e depreciação da moeda. A imaginação e a inovação motivadas pela matriarca ou pelos filhos podem, é verdade, estender o efeito positivo da rede de promessas. Podem ser criadas novas demandas, já que há mais na vida de uma fazenda do que abóboras: música depois do jantar ou a renovação dos quartos da sede podem interessar a algum dos filhos e, se houver quem saiba atender a essas demandas, novas promessas bem colocadas podem fazer o “PIB” da fazenda crescer e manter a roda girando mais um pouco. Algo parecido se daria com estímulos para a inovação tecnológica. Mas, ainda assim, não há nada que sugira ausência de limites. E pode haver um filho que pergunte se tudo precisa passar pela matriarca, ou se poderia ser melhor organizado só entre eles: em que casos o crédito privado não daria conta do problema? Será que o entusiasmo da matriarca não estaria sufocando alguns dos filhos, que têm ideias mais interessantes? Ou é melhor deixá-la regendo o sistema, porque nem todos os filhos jogam naturalmente juntos? Não parece haver respostas gerais para essas questões.
Então, o que essa família pode dizer para o Brasil? Talvez que um impulso fiscal keynesiano é valioso para evitar o colapso da economia diante de um choque “exógeno” ou de uma recessão mais forte, como demonstrado pela recuperação pós-Covid da economia aqui e nos EUA. Mas que, se essas promessas forem muito ambiciosas, podem trazer inflação. E os juros tenderão a subir, mesmo que a qualidade da dívida pública não caia imediatamente. Afinal, ninguém gosta de ver o valor de seus ativos reduzidos em relação ao preço das outras coisas, e, se a dívida insistir em crescer mais rápido que a produção, as promessas vão perder valor e alguns filhos podem até ir embora.
Assim, a família nos lembra que a dívida pública e o crédito privado podem lubrificar as engrenagens da economia, especialmente quando há capital ocioso. Mas sua sustentabilidade depende da velocidade da sua expansão e do bom uso dos recursos. Daí a importância de um planejamento cuidadoso, com objetivos claros e análise séria do custo e do real retorno dos investimentos físicos e sociais financiados pela rede de promessas criada quando se expande a dívida pública.
Joaquim Levy, Ph.D. em Economia pela Universidade de Chicago, é diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra e foi ministro da Fazenda, CFO e diretor-gerente do Banco Mundial, vice-presidente de Finanças do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), presidente do BNDES e secretário do Tesouro Nacional.
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