Em início de ano frenético, com eventos contundentes na política internacional, o mundo assiste, perplexo, a uma sucessão de fatos imponderáveis, a desconcertar velhas alianças e a agravar a instabilidade global. No plano comercial, quando a China declara amor ao livre comércio e os Estados Unidos proclamam protecionismo feroz, todas as velhas agendas colapsam, sob o peso insustentável do inesperado. No campo estratégico, de dissuasão nuclear, com a Otan desfigurada de Trump, descortina-se cenário imprevisível, de imponderável retomada armamentista, com novas potências atômicas e com proliferação vertical e horizontal de arsenais nucleares.
Não parece razoável que países que desejem sair da União Europeia possam manter vantagens comunitárias
Também a implementação do Brexit confunde e ofusca, em capítulo que constrange e paralisa o establishment comunitário. Se por um lado Bruxelas não quer punir Londres por decisão democrática de seu eleitor, o que colidiria com valores basilares da União Europeia, por outra parte é impossível ajudar a inconsequente saída do membro rebelde. O pertencimento comunitário é por certo variável de política externa, ao sabor de livre decisão de governo. Estados-membros compartilham soberania, sem renunciarem a ela, sempre soberanos nos moldes do velho e bom Estado westfaliano. No entanto, não parece razoável que países que desejem sair possam manter vantagens comunitárias, como o direito ao livre comércio e à circulação de capitais, sem contrapartidas de aceitação de livre circulação de pessoas e de supranacionalidade, conforme o Tratado de Roma. No caso, mesmo diante dos riscos de isolamento para o Reino Unido, agora sem o guarda-chuva europeu e hiperexposto às intempéries do protecionismo primitivo e aos caprichos exóticos das novas luzes de Washington, a perda de livre acesso à zona do euro é desastre inevitável. Como bem ensina o velho adágio francês: “não se pode ter a manteiga e o dinheiro da manteiga”.
Não menos preocupante é o destino sombrio reservado ao multilateralismo, da ONU à OMC. Na segurança coletiva, é sintomático que a recente Conferência de Astana, no Cazaquistão, o primeiro efetivo esforço de paz na Síria a reunir as partes em direto conflito, sob a conspícua influência do Kremlin, exclua a presença dos Estados Unidos ou a condução in pectore da ONU. E mais: que Paris e Berlim participem só como observadores, sem voto e voz, o que é paradoxal diante da importância do tema, com a crise migratória a influenciar de forma decisiva as imediatas eleições na França e na Alemanha.
Com o crescimento da Rússia, a ampliar notavelmente sua influência política e militar a par da divisão do Ocidente, os fatos se aceleram em recorrentes episódios de beligerância latente, apartados dos tradicionais fóruns garantidores da prevalência da diplomacia e da solução pacífica de controvérsias. Infelizmente, Francis Fukuyama pode ter falhado em sua clássica leitura acerca do fim da Guerra Fria e de seus desdobramentos civilizatórios. A história continua.