Grândola, Vila Morena, uma canção banida, tocou na Rádio Renascença aos 20 minutos do 25 de abril de 1974. Naquela madrugada, em Lisboa, sob o comando dos jovens capitães do Movimento das Forças Armadas (MFA), os militares cercaram os edifícios de governo, ocuparam o aeroporto e tomaram estações de rádio e tevê. No fim da manhã, em São Paulo, passamos de sala em sala, no nosso colégio, distribuindo cravos vermelhos aos colegas, um gesto explícito de celebração e um ato implícito de repúdio à “nossa” própria ditadura. Depois, ao longo dos 16 meses loucos da Revolução Portuguesa, comemoramos o avanço dos radicais, numa trajetória que parecia reproduzir a Revolução Russa de 1917. Mário encerrou a festa, para nosso desgosto – e sorte dos portugueses.
Mário Soares entrou no clandestino Partido Comunista Português (PCP) em 1942, mas aprendeu depressa e rompeu com os stalinistas em 1950. Preso algumas vezes, finalmente exilado em Paris, reuniu ao seu redor os antissalazaristas da esquerda moderada. Nos 16 meses, participou como ministro sem pasta dos sucessivos governos provisórios liderados por Vasco Gonçalves, um oficial militar próximo dos comunistas. Alguns de meus colegas secundaristas, filhos de exilados comunistas, torciam por Vasco; outros, como eu, por Otelo Saraiva de Carvalho, o estrategista do 25 de abril, líder da extrema-esquerda do MFA. Mário era figura marginal nos governos provisórios. Estava ali representando seu Partido Socialista, fundado apenas um ano antes, na Alemanha, à sombra protetora de Willy Brandt.
O general António de Spínola, feito presidente na sequência do 25 de abril, renunciou no fim de setembro, após fracassar numa tentativa de golpe contrarrevolucionário. Em março, seu substituto, Francisco da Costa Gomes, constituiu uma troika de comando com Vasco e Otelo, o “diretório”. Na França de 1795, “diretório” era o governo controlado pelos girondinos; no Portugal de 1975, o nome de um governo jacobino reticente em apelar ao terror. O segundo 25 de abril, dia da eleição da Assembleia Constituinte, evidenciou o tamanho das ilusões. O PCP de Álvaro Cunhal obteve magros 12,5% dos votos e seus aliados do MDP, 4%. O PSP, de Mário, 38%, e o centrista PSD, 26%. Na centro-direita, o CDS, liderado por um ex-ministro de Salazar, ficou com menos de 8%.
O Portugal moderno é, em larga medida, um fruto da escolha de Mário Soares: a rejeição ao isolamento
Os radicais só conservariam o poder por meio de um golpe, algo como a reprodução da dissolução da Constituinte russa pelos bolcheviques. No “verão quente” de 1975, Mário dirigiu a resistência contra o jacobinismo, obtendo a saída de Vasco e Otelo. No fim de novembro, militares desnorteados, seguidores de Otelo, ensaiaram uma rebelião. O fracasso foi o canto de cisne dos extremistas. Mário ocupou a chefia de governo entre 1976 e 1978, e novamente entre 1983 e 1985, conduzindo Portugal à Comunidade Europeia. Sua ascensão deve-se a seu gênio político, mas também às circunstâncias. Em 1974, os social-democratas governavam a Alemanha Ocidental e a Grã-Bretanha; François Miterrand chegou à presidência francesa em 1981 e, no ano seguinte, Felipe González assumiu a chefia do governo espanhol.
Mário levantou-se contra a ditadura salazarista aos 17 anos, evitou a instalação de uma ditadura comunista aos 50 e integrou Portugal à Europa aos 62. Seus três grandes atos refletiram uma única escolha fundamental: a rejeição ao isolamento. O Portugal moderno é, em larga medida, um fruto dessa escolha.
“Fascismos” – o termo abrangente é aplicado a uma heterogênea coleção de regimes autoritários, mas só descreve, rigorosamente, a ditadura de Mussolini. O franquismo partilhou diversos traços com o mussolinismo. O salazarismo, muito menos. Portugal viveu, entre 1932 e o 25 de abril, sob uma ditadura burocrática e corporativa assentada sobre a influência da Igreja. No cerne do salazarismo estavam a recusa à modernidade e um apego nostálgico à fantasia imperial na África. Mário insurgiu-se contra essa aversão visceral ao futuro.
Portugal não se converteria numa Albânia ibérica nem mesmo se Vasco e Cunhal tivessem vencido a queda de braço do “verão quente”. A história faz diferença: 1975 não era 1945. Os portugueses, apesar de tudo, conheciam o suficiente sobre as lições da Hungria (1956) e da Tchecoslováquia (1968). A União Soviética marchava, ainda que de um modo quase invisível, rumo à sua crise terminal, que começaria em 1979. Mas um hipotético triunfo comunista cobraria um preço, talvez alto demais. Mário, de novo, levantou-se contra o espectro do isolamento, impedindo uma repetição farsesca do outubro bolchevique.
A opção pela Comunidade Europeia não ficou imune a controvérsias. A esquerda comunista e a extrema-esquerda eram contra, assim como um punhado de saudosistas de Salazar. Mesmo entre os social-democratas, o tema suscitou amargas polêmicas. Mário manteve o timão no rumo certo, sem vacilar. Ele buscava a modernidade, o futuro, num país mentalmente ancorado ao passado. O seu triunfo, no primeiro dia de 1986, assinalou uma ruptura tão excepcional quanto a do 25 de abril de 1974.
No fim das contas, Portugal é só uma província: o feudo que se separou da Espanha numa batalha medieval travada por um conde rebelde contra sua mãe e o amante dela. Mas, hoje, Portugal tem uma história a contar aos europeus. Açoitado pela crise do euro, submetido a duros anos de austeridade, o país permanece livre da sedução ultranacionalista que varre a Europa. Lá, naquela margem ocidental do continente, inexiste um partido extremista relevante. Le Pen, Farage, Wilders, Grillo, Petry? Os portugueses têm, como nós, sua cota de políticos cinzentos, canalhas e corruptos, mas não caem na conversa odienta de gente realmente perigosa. Lembram-se, de um lado, de Vasco, Otelo e Cunhal. De outro, de Mário. Ainda bem que ele frustrou os devaneios insensatos da nossa juventude.
RIP, Mário Alberto Nobre Lopes Soares.