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Opinião do dia 1

A escuta telefônica e a tortura

Com a proliferação da escuta telefônica, resta ao advogado discurso meramente simbólico, pois a decisão está, muitas ve­­zes, tomada a partir de declarações interceptadas, de forma parcial, por vezes distorcidas

A Polícia Federal tem lançado mão de operações de grande notoriedade na mídia, todas com denominações inusitadas, tais como Hurricane, Chacal, Satyagraha e Pandora. Em comum, um elemento emerge na Justiça, aclamado pela acusação, porém estarrecedor para a defesa do cidadão – os chamados "métodos modernos de investigação". Destaque para o uso da interceptação telefônica pela autoridade policial, com a concordância do Ministério Público e a indispensável permissão judicial, a despeito de tal prática ferir um dos princípios mais fundamentais e elementares do Direito, o de não produzir prova contra si mesmo.

No regime de exceção, presenciamos graves situações de cerceamento dos direitos do cidadão. Ninguém haverá de se esquecer do terror instalado e potencializado, sobretudo a partir do Ato Institucional n.º 5, de 1968, em que se suprimiu, dentre outras tantas garantias, a mais elementar delas: o direito de habeas corpus. Ao tempo do regime militar, a tortura era, lamentavelmente, o "método de investigação" empregado para a obtenção da "confissão de culpa" o quanto antes. Todavia, mesmo no regime de exceção, a defesa judicial era compreendida como fundamental para a garantia do devido processo legal. Na prática, a defesa atuava como uma espécie de contrapoder ao Estado, a despeito de sua virulência na fase apuratória. Em última análise, os advogados sustentavam, as mais das vezes com sucesso, que as provas colhidas através de violências não poderiam levar ninguém à condenação. Em juízo, os defensores clamavam e bradavam, sem receio, contra a tortura, e as vozes da resistência ultrapassavam as fronteiras do país.

Constatamos agora, porém, que, se no regime de exceção havia a possibilidade de defesa – pois a prova extrajudicial era muitas vezes invalidada –, hoje, no regime democrático, com a proliferação da escuta telefônica, resta ao advogado discurso meramente simbólico. Isso porque a decisão está, muitas vezes, tomada a partir de declarações interceptadas, de forma parcial, por vezes distorcidas, com despropositadas interpretações policiais.

Atualmente formou-se na estrutura da investigação criminal verdadeiro "triunvirato acusatório": a polícia a "grampear", o Ministério Público que "chancela" e o juiz a "autorizar", avalizando, passo a passo, o andamento das "investigações". Não há mais contrapoder oponível ao Estado. Os integrantes da cena processual ficam contaminados em seus convencimentos pela atuação direta no procedimento sigiloso e inquisitorial. No passado, pela hediondez da tortura, repudiava-se a prova assim colhida, o que não ocorre com a interceptação telefônica, apesar de ambas obterem a autoincriminação por via oblíqua. Para os advogados era menos difícil defender os então perseguidos políticos do que os atuais destinatários das "modernas técnicas de investigação".

O ministro Eros Grau, em decisão proferida no Supremo Tribunal Federal, em feito de que foi relator, afirmou, com invulgar nitidez, em julgado de 2008: " (...) O acusado já então não se verá face a um juiz independente e imparcial. Terá diante de si uma parte acusadora, um inquisidor a dizer-lhe algo como ‘já o investiguei, colhi todas as provas, já me convenci de sua culpa, não lhe dou crédito algum, mas estou a sua disposição para que me prove que estou errado’! E isso sem sequer permitir que o acusado arrisque a sorte em ordálias (...)". Fica a indagação: até que ponto a prestação jurisdicional nestes moldes se adequam à possibilidade de um julgamento justo?

Nelio Machado é advogado criminal.

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