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Quando discutimos os meios de comunicação, as intervenções e posições cotidianas, mesmo aquelas em almoços familiares ou nas confusões sentimentais em grupos de amigos, costumamos mostrar como é ingênua a afirmação da neutralidade. Tomamos já como discussão vencida a ideia da imparcialidade. Por que, então, haveria neutralidade ou imparcialidade no sistema judiciário?

Quando a Lei Antiterrorismo for utilizada contra manifestações populares, quando filhos forem afastados das mães porque são negras e quilombolas, vamos defender pura e simplesmente a legalidade? Ou certo “Estado de Direito”, entendido como “a aplicação imparcial das leis”? Não estou sugerindo, de modo algum, menosprezar o direito positivo; estou propondo disputar o espaço que confere legitimidade às leis, às interpretações e às decisões jurídicas.

É nessa medida que defender a Constituição de 1988 é defender o direito positivo vigente sobretudo porque esta Constituição é uma conquista social substancialmente progressista. Nem toda Constituição é imediatamente boa ou justa de um ponto de vista político e social. É somente este ponto de vista que pode fornecer legitimidade aos processos institucionais. A disputa política não se dá em esfera pública igualitária, mas nos enfrentamentos por narrativas próprias e nos enfrentamentos práticos organizados, como ocupações e manifestações de rua.

Assim, creio que a tarefa crítica da esquerda seja hoje, sobretudo, explicitar a posição política que cada decisão implica. Não podemos sacralizar o direito positivo, como se a aplicação das normas ou os procedimentos pudessem ser “puros”, independentes de narrativas e de perspectivas políticas e morais. Não se pode simplesmente defender a legalidade por ela mesma, mas disputar o sentido e, com isso, o conteúdo do sistema legal. Por exemplo, cabe à esquerda mostrar que a ilegalidade do processo de impeachment atual está na ligação entre as leis que regulamentam a gestão orçamentária e a possibilidade de interromper mandato: essa ligação não está prevista constitucionalmente. Vincular gestão e crime de responsabilidade é forçar a lei e a Constituição em sentido hipócrita e ilegítimo. É golpe.

É na democracia que se pode disputar o sentido político que atravessa necessariamente o sistema judiciário

Além disso (e não em vez disso), acima da letra das leis de gestão orçamentária há o espírito complexo que faz com que outros direitos dependam de grana, simplesmente – combate ao zika, combate à miséria, ao desemprego etc. Vale notar como é curioso defender alteração no sistema institucional executivo por gestão orçamentária e, ao mesmo tempo, como sugere Armínio Fraga em entrevista recente, propor “orçamento zero”, isto é, a suspensão dos repasses constitucionais – muitos dos quais ligados a políticas públicas que se sobrepuseram, por seu valor social e político, à letra do controle fiscal.

O central é a decisão sobre o vínculo entre essas normas, sobre a viabilidade de políticas públicas dentro do preceito liberal de modelo fiscal e sobre a aplicação da lei geral ao caso particular. A decisão é conceito político por excelência – a decisão não é elemento especificamente jurídico, como diz Schmitt, mas elemento político formalmente ligado ao sistema jurídico nesse nosso tipo de sociedade.

Ora, a democracia se revela esse espaço aberto à disputa política e moral sobre as leis, interpretações e decisões. É na democracia que se pode disputar o sentido político que atravessa necessariamente o sistema judiciário, na medida em que é praticado por pessoas. E explicitar isso não significa menosprezar a ordem jurídica, mas mostrá-la tão humana quanto qualquer outra esfera da vida social, tão política quanto qualquer outra intervenção no espaço comum, no espaço público. Não se pode simplesmente defender a legalidade como se estivesse em questão assentir ao que diz o sistema jurídico, como se este fosse um sistema impessoal que se revelasse a origem e o fundamento da verdade e do justo.

Todo movimento social que obteve vitória na demanda por algum direito social sabe que não se pode reservar as transformações do direito positivo exclusivamente ao movimento de jurisprudência, como se as transformações – que não são “frias”, mas reacionárias ou progressistas, isto é, com sentido político – respondessem apenas a uma necessidade interna do sistema jurídico; ou como se fossem legitimadas em discussões igualitárias cujo procedimento estivesse calcado em uma razão comum. As conquistas sociais sedimentadas na forma jurídica são resultado de disputas que envolvem racionalidades distintas, que envolvem força política, que envolvem posição explícita a respeito do sentido progressista que tais demandas representam, considerando a vida concreta das pessoas.

Combater o normativismo não implica dizer que estamos em um Estado de exceção. As medidas de exceção só estão em disputa política e social em uma democracia, em um espaço aberto a diferentes narrativas e interpretações sobre os fatos e sobre o dever-ser (direito). Enquanto pudermos enfrentar esse debate, há democracia. Portanto, é explicitando o sentido reacionário de interpretações e decisões correntes que poderemos manter esse espaço aberto e nos colocarmos nele de maneira distinta daquela pela qual se coloca as decisões jurídicas acima da crítica social. Abrir mão de mostrar que há sentidos distintos nas normas e na sua aplicação é abrir mão de colocar-se no espaço aberto e indeterminado que a democracia permite.

Monica Stival é professora de Filosofia Política na UFSCar e autora de “Política e moral em Foucault: entre a crítica e o nominalismo”.
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