Apoiadores do Lula Livre em frente à sede da Policia Federal, em Curitiba, em 2018| Foto: Albari Rosa / Gazeta do Povo / Arquivo

A sugestão soa como heresia para alguns, gera frustração naqueles que estão engajados em denunciar uma suposta perseguição política e um certo jacobinismo jurídico que se instaurou no Brasil, mas a esquerda que se quer competitiva eleitoralmente vai precisar virar essa página.

CARREGANDO :)

O “Lula livre” é hoje um produto político de grande escala e baixa demanda. Ao insistirem na oferta, seus promotores subsidiam a concorrência, constrangem potenciais aliados e fortalecem a direita, em especial a direita reacionária que vende o antipetismo como commodity. As revelações do Intercept Brasil alimentam o imaginário daqueles que vislumbram o ex-presidente saindo do cárcere como um Mandela a unificar o país. Talvez o resultado político seja menos glorioso: enquanto houver qualquer insinuação de Lula como a alternativa, ou a suspeita de tapetão rondando a cabeça das pessoas (“eles querem o poder para soltar o Lula”), a santarronice política tende a triunfar.

Estamos aqui a falar de eleições, da disputa periódica pelo poder, e não do sacrossanto direito que os indivíduos têm de se defender usando todos os instrumentos legais disponíveis. Os diálogos apresentados pelo Intercept só não são graves aos olhos daqueles que consideram que vale tudo – tudo mesmo – para pegar os corruptos (com os quais não simpatizamos). E basta encostar em um balcão de padaria para ouvir um “e daí?” diante das, vamos dizer, questionáveis relações entre Ministério Público e o juiz Sergio Moro. “É, e daí?” A narrativa a ser divulgada pelos entusiastas dos justiçamentos virtuosos continua bastante sedutora: fizemos o que fizemos e o resultado é empreiteiro preso, ex-presidente preso, dinheiro desviado devolvido ao erário. Valeu a pena? “Ô, se valeu”, responderia boa parte da sociedade, para quem “devido processo legal” significa apenas político na jaula, custe o que custar.

Publicidade

Comprovada uma relação promíscua entre acusador e julgador, que Lula e seus defensores busquem os caminhos legais para rever o julgamento. Mas vale lembrar que, embora pareça certo que a Justiça tenha se deixado pautar pela política, não é certo que eventuais mudanças jurídicas alterem a cadeia de consequências políticas já dadas pela Lava Jato. E uma dessas consequências é exatamente o fato de o “Lula livre” ser hoje um obstáculo para uma interlocução mais produtiva da esquerda com a sociedade.

Leia também: Os diálogos hackeados da Lava Jato: entre a ilicitude e a falta de credibilidade (artigo de Luiz Guilherme Marinori, publicado em 1º de julho de 2019)

Leia também: Esquerda, democracia e o 'recall' de mandatos (artigo de Israel Aparecido Gonçalves, publicado em 29 de junho de 2019)

Em toda e qualquer manifestação contra o governo Bolsonaro o slogan estará lá para fazer crer que há um preso político no Brasil. O efeito, porém, tem sido o de lembrar que a esquerda tem um passivo com o qual não está sabendo lidar, inibindo a captura de novos engajamentos, criando embaraços para aqueles que desejam ir para as ruas apenas para sinalizar os erros do governo que aí está, sem necessariamente preencher ficha de filiação ou se comprometer com a culpa ou inocência do líder.

A cada foto, a cada post no Instagram, Fernando Haddad – aquele que deve ser o nome do petismo daqui para a frente – faz questão de pagar o seu pedágio, lembrando que o verdadeiro líder está recluso, porém vigilante, olhando por nós. Não vai dar certo. E “dar certo” significa vender para a sociedade um plano alternativo que seja referendado pelas urnas, uma visão de mundo que faça sentido para os indivíduos que não têm lá muito tempo a perder com a guerrilha ideológica travada nas redes. Há uma vida real, e ela é dura, a tocar.

Publicidade

O PT dirá que tem linha direta com os sindicatos, com as universidades, com a intelectualidade e até com uma parte do povão. É verdade. Trata-se do partido político mais estruturado do país, ainda capaz de capturar milhões e milhões de votos. Mas talvez as lideranças devessem tentar pedir a palavra em uma igreja pentecostal, dessas onde os membros vivem segundo uma batalha espiritual entre as forças do mal e as forças do bem, que entendem que há uma divisão dicotômica e inconciliável entre as coisas deste mundo e as coisas de Deus. Vai dar ruim. A conversa não será melhor com o desempregado que está vendo o filho andando com uma turma esquisita; ou com o estagiário que teve o celular roubado pela terceira vez e, agora, sem o aparelho, precisa continuar pagando as outras 11 parcelas devidas.

Está na conta do PT (e nem poderia ser diferente) a crise econômica que ainda nos assola e o enredo segue essa linha de raciocínio na mente de uma parte bastante representativa da sociedade: o abismo no qual nos encontramos é resultado exclusivo da corrupção, da roubalheira liderada, vejam só, pelo ex-presidente. Por isso, toda vez que o “Lula livre” alcança uns decibéis a mais no debate político, um desses indivíduos produzidos à base de “nova política” sente-se legitimado a quebrar uma placa que traz o nome de uma vereadora brutalmente assassinada em circunstâncias ainda nebulosas. E acredita, verdadeiramente, que essa violência é um ato libertador, uma resposta a essa coisa fluida a que chamam de “esquerda”.

Na política, muitas vezes, é necessário desmistificar os próprios mitos para, então, fazer frente aos mitos concorrentes. Sem isso será muito difícil convencer o povo de que estamos diante de um Mandela quando, na verdade, está-se apenas a enxergar um preso sedento pelo poder.

*Elton Frederick é jornalista, especialista em Política e Relações Internacionais e mestre em Ciências Sociais.