Lula visita São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul. Imagem ilustrativa.| Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula
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Em prefácio para a edição brasileira de seu ensaio Por uma esquerda sem futuro, o professor e crítico inglês T. J. Clark relacionou o fenômeno do lulismo com a decadência de uma esquerda europeia colocada entre aspas, representada politicamente pelo trabalhismo inglês e socialismo francês, e, filosoficamente, dominada por Slavoj Žižek, Alan Badiou e seus discípulos. Segundo Clark, após a crise de 2008, “nenhum outro tempo ou lugar a esquerda sofreu um declínio comparável ao experimentado pela esquerda europeia desde a queda do Muro de Berlim”. Tais palavras, destinadas ao público brasileiro, foram redigidas em maio de 2013, antecipando, em certo grau, os levantes de junho do mesmo ano, que acabaram por influenciar na queda de Dilma Rousseff, em 2016.

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De acordo com T. J. Clark, “esquerda” significa “oposição radical ao capitalismo”. Marx, Engels, Lenin, Adorno, Sartre, Foucault, entre outras dezenas de pensadores e dirigentes políticos, sempre coadunaram com tal premissa. No entanto, o crítico inglês faz um alerta importante para os tempos atuais: a esquerda está imobilizada na prática e, consequentemente, na teoria. Imobilismo, aqui, não significa derrota eleitoral. Trata-se, sobretudo, de uma ausência de “um programa alternativo de política econômica”.

Atualmente, uma nova onda progressista atravessa o continente americano. Assim como na Revolução Mexicana de 1910, quando a América se abriu ao horizonte revolucionário no século 20, López Obrador reabriu as portas para a nova esquerda na região. A partir dali, Alberto Fernández, na Argentina; Luis Arce, na Bolívia; e Joe Biden, nos EUA, venceram suas eleições contra as direitas acusadas de serem neoliberais e fascistas. No Chile, um movimento inédito irá inaugurar uma nova Constituição, provavelmente alinhada às diversas bandeiras dessa nova onda. No Brasil, de acordo com a última pesquisa do Ipec, Lula poderia vencer as eleições de 2022 no primeiro turno. Por mais paradoxal que possa ser, as novas e possíveis vitórias da esquerda aboliram a perspectiva de futuro enquanto transformação social. Enquanto ator histórico e transformador político, a esquerda foi construída a partir de três grandes pilares conceituais: dialética, revolução e crítica da economia política.

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No que tange à perspectiva dialética, a esquerda contemporânea absorveu sem qualquer contradição a defesa do individualismo enquanto projeto social da ideia de mercado. Os movimentos sociais transformaram-se em guetos, onde a fala tem um lugar delimitado e excludente. Em relação ao projeto revolucionário, a esquerda o abandonou por completo, embora o filósofo Valdimir Safatle ainda clame por uma esquerda “insurrecional e revolucionária, não legalista”, conforme recente entrevista conferida ao portal Opera Mundi. Por fim, a esquerda abandonou seu fundamento mais erudito e potencial: a crítica da economia política. Diversos são os intelectuais e movimentos que citam Marx sem ousar absorver sua principal obra, O Capital.

Tal inflexão tem uma demarcação histórica. Os movimentos feministas, negros, ambientalistas, LGBTQUIA+, entre outros, desde as propagandas da Benetton nos anos 1980, lutam por inserir-se no mercado de trabalho e, consequentemente, na ideia de mercado enquanto representação social.

Não se trata mais de produzirem uma revolução cultural, como defendido em 1968. Abandonar o futuro significa, portanto, não mais lutar por um novo projeto de sociedade, mas conquistar seus espaços nas propagandas, nas redes, nas vitrines e nos programas de trainee. Substituiu-se a cor vermelha do socialismo pela cor do arco-íris, um dos fenômenos mais fluidos da natureza. Diante de tal realidade, cria-se uma “luta ideológica” entre o “bem e o mal”, os “progressistas contra os reacionários”, enquanto o capitalismo se globaliza cada dia mais. Provavelmente, daqui a algumas décadas, assistiremos à inauguração de uma loja na Lua, protagonizada por alguém que representa a neutralidade de gênero.

ictor Missiato é doutor em História, professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossociais sobre o Desenvolvimento Humano (Mackenzie/Brasília) e Intelectuais e Política nas Américas (Unesp/Franca).