O verão europeu traz, além das altas temperaturas, a escalada da crise causada pela presença crescente de refugiados, a açular fantasmas de um continente marcado pela culpa e pelo medo. Se o êxodo de populações como decorrência de guerras e de perseguições étnicas não é novidade desde o Antigo Testamento, no atual contexto da União Europeia a questão ganha foros extraordinários, desestabilizando governos, comprometendo alianças históricas e pondo em xeque a governança de Bruxelas.
A vinda incontrolável de sírios e de norte-africanos, sem que a União Europeia consiga reagir de forma consequente, como bloco supranacional, com eficiência e autoridade, tem provocado generalizada discórdia entre seus países-membros, com a paulatina corrosão da política comunitária, a deixar espaço para nacionalismos populistas de triste memória. A banalização de desinformação e o acúmulo de frustrações que a cultura digital promove também contribuem para o galopante clima de niilismo, a desordenar não apenas a macropolítica europeísta, contaminando governos locais e administrações regionais.
Assim como o Império Romano deixou-se sucumbir com as invasões pacíficas do século 5.º, no atual contexto europeu a história parece repertir-se como farsa – não pelo volume de mais de milhão de infelizes fugitivos de guerras alheias, mas pelo fator de cizânia que a presença estrangeira incômoda e de alto custo provoca, ofuscando a razão e o bom senso.
O Brexit e a recente eleição presidencial francesa foram episódios fortemente condicionados pelo repúdio à chegada estrangeira
O Brexit, ainda que contra a vontade da mais informada e produtiva metade do eleitorado britânico, e a recente eleição presidencial francesa, quando o berço do Iluminismo esteve prestes a ser governado por dinossauros ideológicos, foram episódios fortemente condicionados pelo repúdio à chegada estrangeira. Complica-se ainda mais o debate à medida que refugiados são vinculados à crise financeira, ao terrorismo jihadista e às frustrações derivadas da desocupação e da política de austeridade, com a perda de empregos, de direitos e de salário imposta a muitos europeus, a seu modo também refugiados – não propriamente de guerras, mas do lado nefasto da pós-globalização. O resultado deságua no desprestígio de partidos tradicionais e de seus líderes, na descrença do modelo representativo das democracias modernas, com a reivindicação de uma política sem políticos, como se isso fora possível.
Em tal quadro, a questão dos refugiados tem produzido debates furiosos, com vozes truculentas e autoritárias passando a impor-se ao bom senso de fala baixa e de boas maneiras. Enquanto exaurem-se as ideologias clássicas, reféns de seus programas insuficientes, proliferam os depósitos humanos de imigrantes sem direção e sem esperança, os novos párias da Europa dos direitos humanos, paradigma da civilização ocidental.
É fora de dúvida que as respostas comunitárias à crise têm sido inadequadas, sem enfrentar a fundo a explosiva gravidade dos fatos, tão somente com normas paliativas que não enfrentam causas, apenas para minimizar efeitos tópicos de migração indesejada. Diante da mais grave questão enfrentada desde a Guerra Fria, talvez a ausência de Estado em seu sentido tradicional, centralizado e senhor de seu território, é o que esteja a impedir a adoção de medidas eficazes em meio à babel de poderes paralelos que se digladiam, impotentes face às obrigações comunitárias e internacionais, à liberdade de livre circulação e à mitigação de fronteiras.
Leia também: A crise migratória nas fronteiras da Hungria (artigo de Norbert Konkoly, publicado em 2 de outubro de 2015)
Leia também: O novo êxodo (artigo de Atila Roque, publicado em 13 de setembro de 2015)
São exemplos disso a Convenção de Dublin, que determinou, em outro contexto, que o país que primeiro recebe o refugiado seja responsável pelo tratamento de seu pedido de asilo, o que cria na atualidade excessivos ônus a Grécia e Itália; e o recente tratado entre a União Europeia e a Turquia, que estabeleceu categorias de refugiados, pessoas de primeira classe e pessoas de segunda classe. Com isso, substitui-se o critério da urgência humanitária pelo critério de conveniência e de interesse, de mercadorias humanas, ao arrepio de valores comuns da velha Europa, antes tão caros a seus sócios. Some-se ainda o descaso de muitos países-membros que ignoram o programa de acolhida de refugiados por meio de cotas, conforme a Decisão 2015/1601 (vale dizer, lei comunitária). Ademais, há o total despreparo e desorganização na recepção de refugiados, tratada como questão de polícia e não como questão de política, como nos casos da Polônia, Hungria e Áustria. O caso de Portugal também é emblemático: dos cerca de apenas 1,4 mil refugiados que acolheu, quase metade já deixou o país por vontade própria, mesmo ciente de que passaria ao status de ilegal ao cruzar a fronteira.
Quando, em uma de suas antológicas frases, Sartre referiu-se ao que são os outros, ainda que em sentido alegórico e abstrato, também pelo verão europeu não há por que duvidar de que bem sabia sobre o que falava.
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