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Quando menino, eu morava na Rua Ermelino de Leão, 127 e era habitual a descida pelos declives da artéria, vinda do Alto São Francisco, de um cidadão forte, rústico e de barba avermelhada. Vinha acompanhado de uma vaca holandesa cuja ordenha custava 400 réis o copo. Na Lapa era 200, mas as vacas não eram estrangeiras e o serviço era oferecido no domicílio da produtora, perto da capela de São Benedito, santo de grande devoção local que, por sinal, em vida foi cozinheiro – não chaveiro como São Pedro, nem fogueteiro como São João ou casamenteiro como Santo Antônio. Tais funções são definidas numa marcha de Lamartine Babo: "Eu pedi a São João, numa bela oração, que me desse um matrimônio; São João ficou zangado; matrimônio, matrimônio, isso é lá com Santo Antônio. São João não me atendendo, a São Pedro fui correndo, nos portões do paraíso; disse o velho num sorriso, minha gente em sou chaveiro, nunca fui casamenteiro."

Esse texto me levou à consideração de umas tantas profissões submersas pelo tempo, pelos usos e costumes.

Não seria possível nos dias de hoje, seja pelo tráfego, pela freguesia apressada ou pela falta de interesse, uma vaca andar pelas ruas, sem pagar pedágio, taxas ou tributos, deixando excrementos à sua passagem.

Uma profissão decididamente acabada é a de ventríloquo. Anos atrás, quando não existia a televisão, o ator do palco para a platéia, dispunha de uma distância que tornava seus movimentos labiais invisíveis. Era certo, então, que falava pelo ventre. Mas com o microfone rente às bochechas passou a ser flagrado no movimento natural dos lábios e ninguém mais acreditou que falava pelo ventre.

Com o aprimoramento das confecções, diminuiu o número de alfaiates. Os famosos de outrora – Muzilo, Moura e Passafini – não progrediriam hoje. Tinha algo de enfadonho escolher o tecido, tirar a medida, experimentar, uma vez, duas, três, até admitir que era melhor "deixar como estava para ver como ficaria." Por esse tempo os paletós eram fartos de enchimentos nos ombros e no tórax, a simular um cidadão forte e robusto, criando a legenda Tarzan, o filho do alfaiate. Certa vez tive um terno marrom que me dava um porte fora do comum, muito distante da realidade corporal. Atualmente, com as academias e as práticas físicas, aperfeiçoadas e com o "personal training" educando e "alongando", as coisas melhoraram. As confecções aprimoraram seus estilos e os alfaiates rarearam pela diminuição da freguesia.

Desapareceram, também, os latoeiros ambulantes que cruzavam as ruas, à procura de panelas furadas, que soldavam a preços módicos. Também submergiram os propagandistas de rua, o Baiano, o Bataclan e os "pernas-de-pau", exaltando as Casas Abdo na Riachuelo e a Vencedora na Praça Tiradentes, competidoras no ramo de tecidos.

Com a vida ganhando novas velocidades, foram abolidos os chapéus e os coletes, sem justificativa para a denominação de "terno". Veio a exclusão de uma peça onde se expunham os relógios com as correntes estendidas de um bolso a outro e se guardava o canivete, utensílio que não podia faltar. A eliminação dos chapéus e palhetas tornaram os cumprimentos menos cerimoniosos, poupando os membros superiores de curvas além dos 60 graus. Também aboliram-se as visitas, uma reciprocidade que era cobrada como dívida. "Você está me devendo uma visita", dizia um. "É verdade, mas na semana que vem, irei pagá-la", devolvia o outro. "Venha que vou fazer uns bolos de polvilho vindo da Lapa." Por sinal, a estrada que ligava Curitiba à legendária Lapa era chamada Estrada do Polvilho.

De minha parte, nunca usei nada na cabeça – gorro, boné, chapéu, palheta, nem dormi de touca, nem inverno, nem no verão. Vejam nas fotos antigas da Rua XV e observem as pessoas de "passeio completo": colarinho, gravata, chapéu, polainas ou galochas. "Chatos de galocha" é uma espécie tão desaparecida quanto os dinosauros e seus contemporâneos. As polainas apresentavam certa elegância, mas sua utilidade era mínima, uma vez que o frio não se restringia a essa parte do corpo. Conheci um barbeiro em Castro que jamais deixou de usar polainas. As capas de chuva, pela impermeabilidade da borracha acumulavam suores desagradáveis e impertinentes. Tive uma e não quis a segunda. Mas os sobretudos eram obrigatórios porque a temperatura chegava a níveis siberianos. A Terra está acusando uma alta de temperatura e os frios de hoje não são como os de ontem, que levavam as moças a fazerem pulôveres de tricô para os namorados.

Com a velocidade acelerada da existência, a liberalidade em marcha e a diminuição do frio, a população passou a menos se importar com as vestes, resumindo-as a calça, camisa e cueca – samba canção, "que é melhor e não ataca o coração".

Presenciei duas "neves" em Curitiba, a de 31 de julho de l928, muito forte, permitindo a confecção de bonecos; e a de l975, menos intensa e mais escandalosa.

Admite-se que a Terra está aquecendo e não se sente mais o frio que proliferava as rinites, ao apelo dos lenços para abrigarem a produção nasal que não cessava. Tais peças passaram a escassear nos nossos bolsos e suas caixas deixaram de figurar na lista dos presentes masculinos. Vários fatores, vindos de outras tantas fontes, criam ou abdicam de maneiras, transformando lenta e imperceptivelmente os modos de vida.

E, ao embalo do tempo, impossível e impassível na cadência do seu samba, vai nos levando para a eternidade de um outro mundo, que nem todos acreditam haver por nenhum ter voltado para contar. Foi o que me declarou um padre após dizer-lhe que qualquer alternativa lhe era favorável. Ou permanecia com a saúde melhorada ou iria para os encantos do paraíso: "Supõe-se, supõe-se", me disse o vigário. "Porque ninguém voltou de lá para me contar". E assim vamos vivendo neste mundo que Deus fez em sete dias, raramente encontrando alguém que deseja se apressar para o outro, que o desconhecido sempre amedronta ou apavora.

Lauro Grein Filho é presidente do Instituto Histórico e Geográfico e da Cruz Vermelha do Paraná.

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