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Desde a pandemia, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) passou por um processo de transformação impulsionado por decisões judiciais e propostas legislativas, com o intuito de trazer clareza e eficiência a tributação de heranças e doações no Brasil. Recentemente, duas movimentações jurídicas e legislativas indicaram mudanças importantes para o ITCMD: a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no AREsp 2.580.956 e o Projeto de Lei 108/2024, ainda em tramitação no Senado. Ambas tratam de temas como a avaliação de bens a valor de mercado e a incidência de impostos sobre transferências de patrimônio, sinalizando uma tendência de alinhamento ao padrão internacional de tributação.
A decisão do STJ, que estabeleceu o valor de mercado como base de cálculo para o ITCMD, e autorizou o arbitramento pelo Fisco quando o valor declarado diverge dos preços de mercado, responde a um problema recorrente nas transmissões patrimoniais no Brasil. Esse entendimento procura garantir que a base de cálculo do imposto esteja em linha com o valor real dos bens, evitando subavaliações que, até então, impactavam a arrecadação dos Estados. Essa orientação também se aproxima de práticas comuns em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, onde a tributação é mais rigorosa e baseada no valor justo dos bens.
A modernização no ITCMD representa não só uma resposta às novas demandas do cenário pós-pandêmico, mas também uma adaptação ao aumento da mobilidade internacional dos patrimônios
Já o Projeto de Lei 108/2024, aprovado pela Câmara e atualmente em tramitação no Senado, propõe uma série de inovações para o ITCMD que devem impactar diretamente as práticas de planejamento patrimonial. Entre as mudanças, destaca-se a incidência do ITCMD sobre o perdão de dívidas concedidas por liberalidade, tratando essa prática como uma doação, quando entre partes relacionadas. Essa medida visa coibir práticas que poderiam se assemelhar a doações disfarçadas, além de permitir ao Fisco uma análise mais detalhada sobre as transações entre partes sem justificativa negocial clara. Este critério é semelhante ao aplicado em países como a França, em que há incidência de impostos sobre o patrimônio transferido por liberalidade, mesmo que camuflado como outra operação.
Outro ponto importante é a regulação das transmissões patrimoniais advindas de trust, agora equiparadas a doações ou transmissões causa mortis. Esta regra responde à crescente adesão de brasileiros a estruturas de planejamento internacional, como trusts e holdings, que até então escapavam da regulamentação direta do ITCMD. Países como os Estados Unidos já possuem uma regulamentação que equipara a distribuição de bens em vida ou após o falecimento à tributação de doações e sucessões, um modelo que o Brasil parece estar adotando progressivamente.
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O projeto de lei também propõe que bens imóveis doados ou transmitidos a herdeiros estejam sujeitos à jurisdição do estado onde estão localizados, mesmo que o proprietário resida no exterior. Essa medida visa padronizar a arrecadação e simplificar a aplicação do ITCMD sobre patrimônios diversificados geograficamente. Nos Estados Unidos, por exemplo, o sistema de taxação segue essa mesma lógica, em que cada estado detém a competência de tributar imóveis localizados em seu território, independentemente da residência do proprietário.
Para além das especificidades locais, o Brasil parece estar em um processo de alinhamento ao modelo internacional de tributação de heranças e doações. Países europeus e da América do Norte já têm, há décadas, um sistema bem estruturado e uniforme de tributação sobre a transferência de patrimônio, o que incentiva um planejamento sucessório transparente e uma fiscalização mais robusta. Na França, por exemplo, as alíquotas de imposto de herança chegam a até 45% em transmissões patrimoniais de grandes valores. O Japão e a Alemanha também possuem alíquotas elevadas que incidem sobre grandes patrimônios, enquanto o Brasil ainda mantém um teto relativamente baixo de 8%, criando uma lacuna entre as normas nacionais e internacionais.
Com a possível aprovação do Projeto de Lei 108/2024, o Brasil se posiciona para reduzir essa disparidade, conferindo maior robustez ao ITCMD e promovendo uma base tributária mais justa e alinhada às práticas internacionais. Esta modernização no ITCMD representa não só uma resposta às novas demandas do cenário pós-pandêmico, mas também uma adaptação ao aumento da mobilidade internacional dos patrimônios e ao uso de estruturas como os trusts, cada vez mais frequentes entre famílias de alta renda.
As mudanças que vimos desde 2020 e as propostas atuais refletem a busca por um sistema tributário que seja justo e eficiente. A convergência para uma legislação mais próxima das normas internacionais não apenas fortalece o ITCMD como mecanismo de arrecadação, mas também impõe um novo paradigma no planejamento sucessório e patrimonial no Brasil. É um passo em direção à estabilidade e à previsibilidade que, para o contribuinte, se traduz em segurança, e, para o Fisco, em maior efetividade na arrecadação.
Marina de Los Santos Gonçalves, advogada especializada em planejamento patrimonial, é head de wealth planning na corretora Monte Bravo.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos