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Vivemos dentro de 1984, a distopia de George Orwell, em que o Ministério da Verdade controlava as informações sobre o passado para influenciar o futuro com suas mentiras. Nesse revisionismo histórico, o legado ocidental precisa ser pintado como uma sucessão de horrores perpetrados pelo grande vilão da humanidade: o homem branco cristão. Eis o denominador comum de toda a marcha das minorias oprimidas.

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Um livro que pode ajudar a lançar luz sobre essa questão é The Evolution of the West, de Nick Spencer, do Instituto Theos. Com abordagem histórica, ele tenta mostrar como o cristianismo influenciou nossas instituições modernas, reconhecendo o lado bom e o lado ruim dessa influência.

Mas um fato é inquestionável: tal evolução é indissociável da principal religião de nossa civilização. Suas impressões digitais se encontram em todos os grandes marcos civilizatórios. Alguns tentam reescrever essa trajetória como um mar de obscurantismo, preconceito e superstição, mas tal visão é que parece extremamente preconceituosa e obscura.

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A começar pela ideia de que antes do cristianismo o mundo antigo vivia num ambiente secular, de tolerância, com liberdade e igualdade. Na verdade, a religião era onipresente, e a família era tudo: a fonte básica de identidade, com os paterfamilias agindo como magistrados com poderes quase ilimitados. À medida que o mundo mudou de cidades-Estado para impérios, os laços sociais localizados se afrouxaram, num progresso lento, reduzindo o papel do primogênito e dando status de cidadão a todos os filhos, enfraquecendo o poder dos paterfamilias.

A Igreja era inclusiva e universal como nada existente na Antiguidade

Essa individuação gradual, que não se deu numa linha reta, teve apoio na mensagem de Cristo, ao revelar que Deus está potencialmente presente em cada crente. Por um ato de fé em Jesus, cada um poderia ter acesso ao amor divino, uma mensagem igualitária que tornava menos relevante a figura aristocrática do intermediário. Pensar não era mais um privilégio da elite social, e passava a se associar não ao status, mas à humildade.

O cristianismo, segundo Spencer, trouxe a nova ideia revolucionária para a associação humana em que pessoas se uniam com base no desejo e no amor, não mais apenas pelo laço de sangue ou interesses materiais comuns. Pela primeira vez, os humanos – todos os humanos – tinham uma identidade pré-social, sendo alguém antes de ter algum papel relacional definido. A Igreja era inclusiva e universal como nada existente na Antiguidade.

Havia também o aspecto da interiorização do indivíduo, ilustrado pelos monastérios e na figura dos monges. O reconhecimento desse lado interior teve impacto nas leis. Ajudou a introduzir a ideia de intencionalidade no Direito Penal, julgando que o que a pessoa pretendia merecia atenção além do ato objetivamente praticado. Isso ajudou a criar vereditos com base em evidências.

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Os direitos das mulheres, o cuidado dos pobres, a escravidão atenuada, a igualdade jurídica, a consciência: nada disso era uma realidade na época, e é altamente duvidoso que qualquer um deles fosse sequer desejado por aquelas pessoas. Mas as sementes que tinham sido semeadas pelo cristianismo não foram totalmente destruídas no caos social e político da Idade Média. E elas germinaram com o tempo, com suas raízes plantadas lá atrás.

O autor usa vários relatos, textos e leis que mostram como a tendência já apontava nessa direção. Quando, por exemplo, o Concílio de Narbona, em 1054, conclui que “Nenhum cristão deve matar outro cristão, pois quem mata outro cristão indubitavelmente derrama o sangue de Cristo”, isso era parte dessa ideia que foi se desenvolvendo até chegar ao código de conduta de cavaleiros, destacando a cortesia, a honra e o cavalheirismo. Poderia ser hipócrita até, mas sem dúvida era um tremendo avanço em relação ao ambiente de violência irrestrita que o precedeu.

Havia, nas guildas e cidades, a emergência de uma esfera legal de segurança que seria um dia chamada de “sociedade civil”. A lei passava a ser mais centralizada e estruturada. A influência cristã na linguagem, na literatura e na cultura ocidentais é evidente e inegável. Até mesmo Richard Dawkins, um dos “quatro cavaleiros” do neoateísmo militante, reconhece que é impossível apreciar a literatura inglesa sem mergulhar de alguma forma na Bíblia. Não conhecê-la, admitiu o cientista, é ser de certa forma um bárbaro.

Do mesmo autor:Como o pensamento tribal destruiu o liberalismo americano (23 de agosto de 2017)

Leia também:Ainda sobre religião e seus cultos desprezadores (artigo de Gabriel Ferreira, publicado em 22 de agosto de 2016)

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O cristianismo e a Bíblia foram centrais na formação da Grã-Bretanha, que por sua vez foi o grande farol da civilização ocidental. Quando essa civilização esteve ameaçada durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill e os ingleses em geral encararam a “cruzada” em defesa da civilização cristã como peça central da narrativa de mobilização no combate ao inimigo.

Há muito mais evidência da influência cristã e da Igreja nas principais instituições ocidentais. A Magna Carta, por exemplo, que completou 800 anos recentemente, teve participação direta da Igreja, e uma cláusula negociada com o rei João especificava o direito de a Igreja inglesa permanecer livre, com seus direitos garantidos. Não era, ainda, o império impessoal das leis, claro, pois os “livres” eram parte de uma elite. Mas era a semente do Bill of Rights, plantada com ajuda essencial do cristianismo.

Se, por um lado, a Igreja ajudou na ideia de direito divino do monarca, por outro lado ela foi fundamental para limitar tais direitos e impor um código de conduta mais justo. Em conjunto, as responsabilidades que o cristianismo colocou sobre o rei – justiça, paz, cuidado com os fracos, moral pessoal – apontam na direção de um monarca que foi colocado em uma ordem política cuja legitimidade de sua posição dependia, de alguma forma, do cumprimento desses deveres. Era uma realeza sob Deus, orientada, ainda que por esperança, para o bem comum do povo.

Há também um debate interessante sobre a participação cristã no próprio humanismo secular, ou ainda na formação do welfare State. Mas o ponto central já está claro: não dá para fingir que o Ocidente moderno não tem ligação umbilical com o cristianismo. E, se consideramos a civilização ocidental digna de admiração e do esforço de ser preservada, talvez seja interessante questionar se é mesmo viável mantê-la sem o arcabouço religioso e moral que lhe deu, desde sempre, sustentação.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.