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Sanitização de ônibus em Curitiba para previnir a Covid-19. Imagem ilustrativa.
Sanitização de ônibus em Curitiba para previnir a Covid-19. Imagem ilustrativa.| Foto: Daniel Castellano / SMCS

Em dezembro de 2020, já havia dito aqui na Gazeta do Povo que os decretos estaduais e municipais que impuseram o toque de recolher são inconstitucionais. Isso porque, em apertado resumo, só é possível restringir o direito de ir e vir das pessoas na hipótese de estado de sítio decretado pelo presidente da República, sob o qual “poderão ser tomadas contra as pessoas (...) medidas” como a “obrigação de permanência em localidade determinada” (artigo 139, I, da Constituição).

Justificadamente, o que não afasta o equívoco, diante desses apontamentos, muitos argumentaram que haveria uma contraposição entre direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Seriam eles o direito de ir e vir e o direito à saúde. O que se verifica, a princípio, é uma falsa antinomia entre direitos fundamentais previstos expressamente na Constituição. Vale analisar as passagens do texto constitucional que tratam destes direitos.

Inicialmente, os dispositivos que fundamentam o direito de ir vir. O artigo 5.º diz que “II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e “XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. E a sua exceção, o que permitiria a restrição ao direito de livre locomoção, na seguinte hipótese, está no artigo 139: “Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no artigo 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: I – obrigação de permanência em localidade determinada”.

Já o fundamento do direito à saúde se encontra no artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Teríamos, então, o falso dilema entre limitar o direito das pessoas através do toque de recolher (direito de ir e vir) e, ao não se limitar esse primeiro direito, estar-se-ia ferindo o direito à saúde da generalidade da população, por não se intensificar o combate à disseminação do vírus.

Sob o aspecto hermenêutico, ou seja, interpretativo, é completamente equivocado justificar os toques de recolher por meio de decretos (e, ao fim, qualquer ato normativo inferior à Constituição) com fundamento no direito constitucional à saúde. Isso porque, e isso é de fácil verificação, o artigo 196 trata de um direito abstrato, e dever do Estado, mas que, no entanto, trata de uma regra não autoaplicável que depende de regulamentação legal para que tenha seus efeitos. Não basta dizer que o Estado tem de garantir a saúde de forma genérica. Deve haver leis que materializem as políticas públicas voltadas à saúde. E isso não se faz por decreto.

De outra ponta, admite-se que há certo grau de abstração nos incisos II e XV do artigo 5.º. No entanto, nesse caso, não necessariamente há necessidade de um ato comissivo por parte do Estado para que se garanta o direito de livre locomoção. A pessoa poderá se locomover a qualquer momento e para onde quiser sem que para isso necessite de alguma atuação do Estado. Basta que este não limite seu direito de forma concreta.

Lembre-se, o direito a saúde só se concretiza minimamente por meio do Estado, por meio de políticas públicas de saneamento básico, tratamento de doenças, nutrição da população etc. Poder-se-ia argumentar, então, que os decretos são atos do Estado com o intuito de garantir o direito a saúde. Ocorre, no entanto, que para isso se limitou o direito fundamental de ir e vir.

E por que defendemos não haver antinomia? Pois a Carta Magna foi sábia ao trazer em seu próprio corpo norma de equivalente hierárquico, que traz as poucas hipóteses em que se admite a restrição do direito de locomoção das pessoas: justamente o artigo 139, I, que trata do estado de sítio.

Portanto, nem sob a alegação do direito fundamental à saúde (abstrato e geral) pode-se afastar a aplicação do artigo 139, I, com mesma hierarquia, mas aplicável ao caso pela sua especialidade, vale dizer, possui maior adequação da norma ao fato (o direito de ir e vir só poderá ser limitado em caso de estado de sítio, ao passo que o argumento do direito à saúde jamais poderá ser utilizado para esse tipo de restrição). Ademais, um princípio abstrato, se assim podemos chamar, do direito à saúde jamais afastará a aplicação de uma norma concreta e especial. Para ser mais preciso, nenhum princípio abstrato servirá para afastar aplicação de norma concreta, ainda que seja de hierarquia inferior!

Vale trazer um exemplo bastante exagerado, mas que por isso mesmo torna o argumento da inexistência de antinomia bastante clara. Ninguém vai se convencer do argumento de que uma pessoa pode publicar um vídeo e ameaçar alguma autoridade pública, imputar-lhe crimes falsos e dizer que isso é seu direito fundamental previsto no artigo 5.º, inciso IV, da Constituição, pelo qual lhe é garantida a livre manifestação do pensamento. Ora, por óbvio essa pessoa estará sujeita, por exemplo, aos artigos 147 e 138 ambos do Código Penal, que tratam, respectivamente, do crime de ameaça e calúnia.

Veja que ninguém defenderia que, nesse caso, mesmo uma norma constitucional (liberdade de expressão) afastaria a aplicação da norma especial do Código Penal. Também não se verifica qualquer confronto de princípios. Da mesma forma, e com menos razão, não se pode cercear a liberdade das pessoas com fundamento na previsão genérica do direito básico à saúde quando temos uma norma expressa que veda tais restrições, salvo em caso de declaração de estado de sítio.

Nem se argumente que a Lei 13.979/20, que trata das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, seria a norma especial que autorizaria os decretos de toque de recolher, pois já é consenso que não há previsão na lei que possa justificar tais medidas e, ainda que fosse autorizado expressamente, certamente seria uma norma eivada de inconstitucionalidade (conclusão que certamente se chegará ao analisar outros dispositivos dessa lei quanto a restrições de toda ordem de direitos). Aliás, esse argumento perde completamente a valia, visto que a lei só vigorou enquanto reconhecido o estado de calamidade pública que se encerrou em dezembro de 2020, conforme o Decreto Legislativo 6/2020.

Portanto, temos então que é falsa a antinomia entre normas fundamentais que preveem direitos de locomoção versus saúde, visto que a restrição daquele por norma constitucional expressa só é admissível com a declaração do estado de sítio. Igualmente, não se afasta a aplicação de uma norma concreta com fundamento em um princípio abstrato, ainda que seja de hierarquia superior. Fosse assim, não haveria qualquer segurança jurídica no sistema normativo pátrio, visto que qualquer regra legal (lato sensu) poderia ser relativizada (por gestor público ou por representante do judiciário) com base em princípios abstratos como direito à vida, saúde, liberdade de expressão etc.

Adriano Biancolini é advogado com atuação especializada em Direito Público e Empresarial.

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