A realidade dos argumentos que costumamos ver reproduzidos com toda naturalidade faz-me pensar em 1984 e em A revolução dos bichos, de George Orwell. Estou convicta, infelizmente, de que a mensagem da obra de Orwell tem muito mais atualidade e respeito do que a Declaração dos Direitos Humanos, de 1948. Não posso assistir à desumanização do ser humano e nada fazer. Orwell faz uma crítica acirrada às instituições totalitárias denominando, "Ministério da Verdade" ao que é o encarregado de "reescrever" fatos históricos, fazer desaparecer outros etc. Por ironia, o responsável pela "polícia do pensamento" e pela tortura era o "Ministério do Amor". Em A revolução dos bichos o autor afirma: "Todos são iguais, mas há os mais iguais". Na ditadura vogava nas Faculdades de Direito um refrão: "Não sabe onde colocar isto? Coloca no decreto-lei, aí cabe tudo." Hoje só o nome mudou – vivemos governados por medidas provisórias.

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Algo semelhante ocorre com o conceito de dignidade humana. Invocando-o abrem-se discussões sobre pré-embrião; interrupção voluntária da gravidez; direitos reprodutivos; ter ou não consciência de si mesmo, capacidade de relacionar-se com os demais; redução de embriões; direito à redução do sofrimento e "qualidade de vida" (aliás, essa última é uma expressão tão dessubstanciada que serve para "vender" de itens eletrônicos a imóveis de luxo). Você tem um problema? Seja qual for, invoque a dignidade humana que sempre haverá adeptos a defendê-lo.

Estamos a ponto de reescrever o Código Penal passando a classificar o homicídio como crime de "interrupção voluntária da vida alheia". Nova embalagem, fórmula inalterada. Acostumamo-nos a distorcer, pelo artifício da língua, de neologismos, as realidades mais básicas e mais confirmadas da vida, colocando tudo num caldo de cultura relativista em que as palavras subordinam-se ao que a necessidade exigir. Isso cauteriza o ato de pensar a ponto de haver quem nem se dê conta dessas distorções. O incrível é que uma distorção gera outra e mais outra. Haverá jurista que afirme não existir mais homicídio e que matar alguém nada mais é do que praticar a "interrupção voluntária da vida de outro ser humano"?

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Bernard Nathason, médico americano muito experiente em abortos, até porque foi responsável por milhares deles, admite ter criado, à base de distorção, o slogan "a mulher é dona de seu corpo" para deflagrar a campanha pela liberação do aborto nos EUA. Relata, na sua autobiografia, que num andar do hospital lutava por salvar a vida de um bebê com 8 meses de gestação e no andar de baixo abortava bebês com igual tempo de vida. Reconhece ter chegado à beira da loucura diante da incongruência de suas atuações, até tomar consciência da barbaridade e assumir publicamente que tergiversou as coisas, mesmo sabendo que cientificamente o embrião não é parte do corpo da mulher, mas outro ser humano.

Aonde nos levará essa distorção, esse disfarce da realidade? Queremos viver a mesma experiência de Nathason? Que tal reduzir o sofrimento aprendendo com sua coragem de assumir os erros e retificá-los? Nos navios, há um leme grande de muitos metros e um pequeno leme unido ao grande – o trim tab, que movimenta o leme grande permitindo a correção de rota do transatlântico. Ainda podemos ser um trim tab contendo a banalização da dignidade da pessoa humana, interrompendo recursos típicos do "Ministério da Verdade" de que fala Orwell?

Não sejamos engolidos por modismos de uma sociedade que busca a qualquer custo livrar-se de todo o sofrimento. Reconheçamos que a vida é única, que por todos sermos humanos é que somos iguais, sem permitir que existam os "mais iguais" nos diferentes segmentos da vida humana e da sociedade em que vivemos. Com alta coragem e consideração pela dignidade da vida humana chamemos as coisas pelos seus nomes: dizer a uma pessoa que tem câncer que está tudo bem e nada vai lhe acontecer é tão hipócrita como dizer que interromper uma gravidez não causará sofrimento.

Até quando conviveremos com a falácia de que podemos acabar com qualquer tipo de sofrimento? Para afastar o sofrimento há quem se mate, há quem se drogue, há quem mate os que "atrapalhem o caminho", como conseqüência de uma civilização que se nega a enfrentar as realidades ineludíveis: a morte é a única coisa absolutamente certa na vida. Nunca seremos eternos. Ocorre que, estranhamente, tem parecido menos chocante "interromper a gravidez" do que sepultar um filho! De igual modo há quem não tenha coragem de enfrentar a realidade de que a vida é intangível sempre!

Em breve os conceitos de integridade e ética engrossarão as fileiras do novo dicionário reescrito pelo "Ministério da Verdade" de Orwell. Antes que isso aconteça, tenhamos a coragem de ser um trim tab e de interromper filmes já vistos – de Hitler a Milosevic, passando por infindáveis atos cotidianos de desrespeito à dignidade humana. O oceano necessita de milhares de gotas d'água porque é delas que é feito! Tendo coragem de ser uma delas, com certeza a dignidade e a vida humanas nos serão muito gratas por contribuirmos para que não haja "os mais iguais", os que se sentem no direito de decidir a respeito da vida alheia! Em vez de sermos arrastados pela corrente temos de mostrar a coragem de assumir a realidade. Conforme afirmou o médico Cícero de Andrade Urban (Gazeta, 3/9), mesmo sendo voto vencido, teremos feito nossa parte!

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Maria de Lourdes Seraphico Peixoto da Silva é advogada, doutora em Direito Constitucional e professora do Departamento de Direito Público da UFPR. Tem formação em Filosofia e Bioética.