Nosso carnaval nacional há muito tempo não consiste apenas em colocar uma fantasia e sair no bloco da vizinhança, passando a constituir-se de infinitas estratégias para fabricar uma "encenação" do popular
O carnaval, em todo o Brasil, faz parte da grande agenda de comemorações consideradas "tradicionais" em nossa cultura nacional. Assim como muitas outras manifestações, já entrou para o rol do nosso "patrimônio imaterial", o que, de imediato, nos arranca da contemplação ingênua de uma festa simplesmente "popular" e "tradicional" para inúmeras considerações que afetam inclusive o modo como os próprios carnavalescos se percebem, sem falar nas questões de cidadania e inclusão social, das transformações da estrutura do Estado brasileiro, das políticas de cultura. Não há mais nada nesse universo da cultura passível de ser pensado fora desta gama de considerações sociais, culturais e políticas.
E o nosso carnaval nacional há muito tempo não consiste apenas em colocar uma fantasia e sair no bloco da vizinhança, passando a constituir-se, sobretudo, de infinitas estratégias para fabricar uma "encenação" do popular. Não de um popular em si mesmo, mas que hoje existe dentro de uma amálgama de difícil conceituação.
O carnaval é pensado, sempre, em relação à "cidade" e não como uma festa em si mesma. Portanto, pensar o carnaval em Curitiba é também um exercício de reflexão sobre a cidade. Não falamos de uma mera cidade: trata-se de uma "cidade" experimentada, tecnificada, poetizada, modelada, culturalizada, politizada, ideologizada, enfim, que tem servido a inúmeras apropriações ao longo de sua história. Claro que o carnaval do Rio de Janeiro, de Salvador, de São Paulo, entre outros, também é pensado em relação a essas cidades, mas nesses lugares o carnaval tem uma existência prévia reconhecida. Aqui, diferentemente, a cidade impõe-se como uma entidade cuja identidade antecede à folia, tão brasileira, e é vista, pensada e cantada como detentora de um potencial negativo para o carnaval.
Enfim, a "cidade" não gosta de carnaval. Mas desde quando? Foi sempre assim, desde o berço? Há registros suficientes sobre esse pendor tão definitivo para a quietude, a ordem e a limpeza? De fato, se fôssemos julgar pela ausência geral de registros, poderíamos até mesmo dizer que aqui, diferentemente do que diz a canção de Paulo Vitola e Mário Galera, esta não é uma cidade de "portas abertas", muito pelo contrário.
Mas a falta de registros sobre as folias carnavalescas não vem da sua origem. Vem de certo período em que o carnaval deixou de ser uma festa "privada" de clubes, famílias tradicionais, carros alegóricos luxuosos que desfilavam para uma multidão de plebeus às margens da famosa Rua XV. Para este período, sim, há registros.
Essa memória passou a faltar quando o popular tomou para si a festa e desejou fazê-la à sua maneira, invadindo a cena, ou, como diz Maé da Cuíca, nosso folião mais dignamente histórico, "Quando a negrada cruzou a linha do trem, lá na Vila Tassi e foi para a avenida". Desde então, faltam registros, e este descaso, que veio de cima para baixo, é que gerou a opinião de que esta cidade não tem vocação para a folia. E o que é pior, esse descaso contaminou a própria autoestima dos carnavalescos, que, da mesma maneira, durante muito tempo, não julgaram sua festa digna de ser registrada.
Poderíamos mesmo afirmar que aqui, entre nós, o carnaval tem o seu mais autêntico espírito de "fugacidade", de desperdício de memória e de objetos carnavalescos: as próprias fantasias e carros alegóricos são desmontados todo ano para o reaproveitamento do material. E o registro dessas memórias também se esvai nesse desmonte cíclico.
Tudo se desfaz como se fosse o mais autêntico espírito do "fazer tudo novamente" do consumo carnavalizante, do improviso carnavalesco. Seria muito original se não fosse consequência da falta, e sim, do excesso, não apenas material, mas fundamentalmente existencial. Mas, ao contrário, resulta de uma carência financeira construída ao longo de décadas em função de várias acusações que partem, inclusive, da obstinada falta de cultura carnavalesca por parte dos órgãos oficiais: aqui falta "ginga", aqui falta "beleza", aqui falta "samba no pé", aqui não se sabe fazer carnaval e, portanto, é preciso trazer carnavalescos de fora para "ensinar" as escolas a melhorar nosso carnaval.
E, como não se sabe formatar esse produto, não há investimento suficiente, além do insuficiente mecenato público.
Felizmente as coisas estão mudando e, embora ainda faltem os famosos blocos de "sujos" por falta de iniciativa popular, tão desacostumada da folia, temos a incrível inspiração do bloco pré-carnavalesco Garibaldis e Sacis, que aí está para mostrar como a cidade, no seu espaço mais tradicional e histórico, sabe cair na maior folia curitibana. Esperemos, pois, que esta "pedagogia da alegria" funcione, sem ser institucionalizada de todo!
Selma Baptista, professora do departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná, é pesquisadora na área de cultura popular e políticas públicas de cultura.
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