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A fumaça da negligência

A tragédia de Santa Maria ofereceu à presidente Dilma Rousseff a oportunidade de reinventar-se: deixaria de ser a gerentona para assumir o papel de xerifona. Com emoção e firmeza, já no dia seguinte se dirigiu aos novos prefeitos prometendo que o luto não se repetirá e os responsáveis serão punidos. Imediatamente, pelo país afora, as autoridades iniciaram uma inédita cruzada para verificar a segurança das casas noturnas e de espetáculos.

Na sexta-feira, menos de uma semana depois, com olhos ainda marejados, almas feridas e dominada pela perplexidade, a sociedade assistiu à coroação do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) para reocupar o cargo de chefe do Poder Legislativo ao qual renunciara há seis anos para não ser cassado por falta de decoro e imoralidade.

Enquanto a polícia gaúcha começa a desmontar a engrenagem de irresponsabilidades, imprevidências e fraudes que tirou a vida de 236 jovens e mantém outras 126 em risco, assistimos na Câmara Alta da República à consagração de outra engrenagem, aparentemente inofensiva, mas crucial para alimentar e perenizar a bandalheira e a incúria. Em algum momento elas se articulam em novas catástrofes e desgraças.

O governo federal não pode nem deve interferir no Congresso, mas o PMDB, partido ao qual pertencem tanto o novo vice-rei como seu antecessor, José Sarney, é o seu principal parceiro, beneficiário e sustentáculo. Depois da manifestação de solidariedade do ex-deputado e ex-ministro José Dirceu em favor de Renan Calheiros, considerando-o também uma vítima da perseguição da imprensa e do Ministério Público, selou-se uma irmandade embaraçosa.

Embaraçosa, sobretudo, para a presidente Dilma no momento em que se formaliza a decisão de reconduzi-la à presidência em 2014. Os dois anos iniciais do seu mandato foram concebidos para exibir seus atributos como executiva mandona e competente. Começaram bem, terminaram mal. O fim do biênio, numa conjuntura internacional ainda mais desfavorável, prenuncia precariedades e desacertos volumosos demais para serem mantidos sob o tapete.

Os fantasmas da inflação, do apagão elétrico, da desindustrialização, dos transportes e, principalmente, da inconfiabilidade estatística estão saindo dos armários sem a menor cerimônia e não por culpa da presidente, mas dos acertos políticos que herdou, mantém e dificilmente poderá desativar.

Nesse cenário, a formidável popularidade de Dilma Rousseff como gerente e dona desta casa chamada Brasil reclama um suporte adicional: o papel de xerife. A insegurança federalizou-se, a corrupção alcança esferas inimagináveis e as cidades que funcionavam como santuários do bem-estar perverteram sua função.

Em algum momento, a santa classe C, devidamente empregada e saciada em matéria de consumo, começará a chiar. Envergonhada com a proliferação dos Renans e/ou acionada pela lembrança dos jovens intoxicados pela fumaça do desleixo e da negligência.

Alberto Dines é jornalista.

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