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O surto pandêmico da Covid-19 é um, dentre vários fatores, que desafiam o bom senso e a sanidade mental nesse atípico ano de 2020. Desde que a “desconhecida pneumonia de Wuhan” foi anunciada entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020, o mundo oscilou entre descrença, medo, lockdown e abandono do isolamento social – mesmo em meio à ascensão no número de casos. A corrida pela imunização contra o vírus que já deixou mais de 1 milhão de mortos oficialmente contabilizados pelo mundo (sempre pode ser mais que isso) comprimiu ao máximo possível o prazo para estudo, testes e produção de uma vacina que nos livre finalmente dessa “gripezinha”.
Resumidamente, um processo de criação de vacina consiste em pelo menos três fases: a criação, a partir do vírus, e testes em um pequeno grupo de voluntários (fase um); o teste da capacidade de geração de anticorpos (fase dois); e o teste em milhares de voluntários para comprovar ou não a eficácia (fase três). Das mais de 160 vacinas em fase de criação e testes, pelo menos cinco estão na fase três: a da chinesa Sinovac, a da BioNTech/Fosun Pharma/Pfizer, a da Janssen Farmacêutica, a da norte americana Moderna e, é claro, a mais falada de todas, a da Universidade de Oxford, em parceria com a farmacêutica AstraZeneca.
Como se não bastasse o diário crescimento de mortos e infectados, e de sucessivas ondas de contágio, médicos, pesquisadores e laboratórios trabalham pressionados por uma economia global em desaceleração vertiginosa, por um número cada vez maior de desempregados e pela ansiedade generalizada em retomarmos uma vida mais ou menos normal, sem máscaras ou medo. Nesse sprint farmacêutico global, o Instituto de Pesquisa de Epidemiologia e Microbiologia da Rússia anunciou, em maio, uma vacina supostamente sem efeitos colaterais, cujos testes clínicos foram dados como concluídos já em agosto. No mesmo mês, Vladmir Putin anunciou o registro da Sputnik V – cujo nome faz alusão ao satélite soviético que colocou animais em órbita. Esse anúncio foi visto com bastante desconfiança, seja pela falta de dados numéricos sobre o estudo, seja pela rapidez de sua conclusão.
Como afirmam Tamer Cavusgil, Gary Knight e John Riesenberger, quase 40% dos estudos clínicos de medicamentos são feitos na China e na Rússia. Em negócios internacionais, isso é muito comum e se chama global sourcing, ou seja, a disseminação das atividades de uma mesma empresa em vários locais diferentes pelo mundo. É o que faz, por exemplo, a Apple, ao desenhar e desenvolver produtos na Califórnia, usando novas peças criadas em Hong Kong, e produzindo aparelhos na China.
Tal qual ocorre em outros setores, os custos mais baixos para a contratação de médicos e recrutamento de pacientes justifica o sourcing desses estudos para países emergentes. De uns anos para cá, no entanto, questões éticas foram levantadas, em especial na Rússia, onde os salários dos médicos são relativamente baixos. Tamer Cavusgil, Gary Knight e John Riesenberger afirmaram que um médico russo pode ganhar mais de dez vezes seu salário recrutando pacientes, em vez de simplesmente testá-los. Além dessa preocupante questão, os autores pontuaram que muitos estudos desenvolvidos no país de Putin não foram revisados oficialmente pelas autoridades locais.
É nesse contexto que emergiram as fake news sobre a vacina de Oxford. Fotos, memes, vídeos e toda uma campanha de desinformação apontam que a vacina britânica transformaria as pessoas em macacos (?!?!), e esses absurdos estão sendo direcionados justamente nos mercados onde os russos estão tentando vender a sua vacina, como Brasil e Índia. Tem-se aqui uma tentativa de jogar sobre os demais a desconfiança que a Sputnik V atraiu sobre si.
Com isso, tornou-se claro que o que está em jogo não é apenas uma vacina que ponha fim ao tormento da Covid-19, mas uma polpuda fatia do trilionário mercado farmacêutico. Em 2019, esse mercado teve uma receita de mais de US$ 1,2 trilhão, e certamente as ações das companhias que estão desenvolvendo as potenciais vacinas terão um meteórico crescimento assim que sua eficácia seja comprovada.
O professor Alexander Sergunin, da Universidade de São Petesburgo, comenta que a Rússia pós-soviética tem sido vista como imprevisível, irracional e, muitas vezes, agressiva. A ofensiva na Geórgia em 2008, a anexação da Crimeia em 2014, a interferência russa na guerra civil síria desde 2015, e a suposta interferência nas eleições presidenciais norte-americanas em 2016 seriam provas da instabilidade de Moscou. Agora, a campanha difamatória contra o produto da Universidade de Oxford e da AstraZeneca é mais uma acusação que pesa sobre os russos – no momento em que choramos pela perda de entes queridos.
A balança comercial russa depende largamente de produtos primários, como gás natural, madeira e petróleo; e o investimento em biotecnologia, nanotecnologia e informática aeroespacial veio na tentativa de diminuir a dependência comercial dos recursos finitos. A estratégia parecia estar funcionando até 2008. Agora, com a tentativa do uso político da vacina, o que os russos atraem é justamente o oposto do que parecia ser a intenção: mais desconfiança e percepções negativas.
João Alfredo Lopes Nyegray é advogado, formado em Relações Internacionais, especialista em Negócios Internacionais e coordenador do curso de Comércio Exterior na Universidade Positivo.