Ouça este conteúdo
Diferentemente do que o senso comum pode nos levar a crer, a globalização é um fenômeno que atinge não apenas a economia ou a tecnologia, mas que tem ampla influência no direito e, em especial, no Direito Penal.
Essa mundialização do Direito Penal teve início no século 20 e foi impulsionada por dois principais fatores. De um lado, a necessidade de se solucionar problemas criminais cujos efeitos negativos não se limitavam às fronteiras de um único Estado, mas atingiam diversos países. Foi, portanto, com o objetivo de resolver questões como as dos crimes de guerra, de genocídio, de terrorismo, de tráfico internacional de drogas e, mais recentemente, de lavagem de dinheiro que os diferentes Estados começaram a dialogar sobre a matéria penal na esfera internacional. De outro lado, a internacionalização do Direito Penal também ocorreu por conta de questões criminais que, apesar de estarem limitadas ao ambiente interno de um país, eram objeto de uma pauta cosmopolita comum. Nesse contexto, a globalização do Direito Penal foi impulsionada igualmente para propor soluções a temas como o tratamento carcerário do infrator, a tortura, o banimento de penas cruéis, a corrupção e a atividade de organizações criminosas, dentre tantos outros.
No cenário internacional, alguns órgãos tomaram destaque nesse movimento de mundialização do Direito Penal. Entre vários, pode-se citar o Tribunal Penal Internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Organização das Nações Unidas (ONU). É de se dizer que a ONU nasceu com um objetivo extremamente nobre: evitar uma terceira guerra mundial. No entanto, ela logo percebeu que o cenário internacional exigia a discussão de diversos outros temas, muitos deles envolvendo o Direito Penal. Nessa senda, a ONU assumiu um relevante papel de interlocutora da matéria penal entre os 193 países que a integram. Essa interlocução é realizada de dois modos. Primeiro, pela criação de tratados e de convenções internacionais sobre questões criminais. Para exemplificar, pode-se mencionar o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que prevê diversas garantias à pessoa presa; a Convenção de Mérida, a qual dispõe sobre o combate à corrupção; e a Convenção de Palermo, cujo objeto é a luta contra o crime organizado. Segundo, a ONU passou a dialogar sobre o Direito Penal também por intermédio de um programa internacional de prevenção do crime e justiça criminal, o qual foi responsável por criar institutos regionais nos quais a matéria penal é amplamente debatida.
No âmbito do sistema organizacional da ONU, há atualmente quatro institutos de prevenção do crime. O Instituto Europeu para Controle e Prevenção do Crime, com sede em Helsinque, na Finlândia; o Instituto das Nações Unidas para a Ásia e Extremo Oriente para Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes, localizado em Tóquio, no Japão; o Instituto Africano das Nações Unidas para Prevenção do Crime e Tratamento dos Delinquentes, com sede em Kampala, em Uganda; e o Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente (Ilanud), fundado em 1975, com sede em São José, na Costa Rica.
O objetivo do Ilanud é dar assistência à comunidade internacional na matéria penal, promovendo a cooperação entre os países integrantes da América Latina, seja por meio da formalização de acordos de cooperação, seja por intermédio de cursos de capacitação e de treinamento. No âmbito de tal instituto, os 19 países-membros, dentre eles o Brasil, compõem um Comitê Permanente da América Latina para Prevenção do Crime (COPLAD), onde debates são travados sobre temas como crime organizado transnacional, justiça criminal juvenil, justiça criminal e gênero, situação carcerária do preso, alternativas à prisão, justiça restaurativa e tantos outros. No bojo deste comitê, os problemas são discutidos e propostas de soluções regionais são apresentadas pelos seus integrantes.
Como se vê, a globalização do Direito Penal parece ser inevitável e mesmo necessária. Afinal, se ainda não encontramos algo melhor que o Direito Penal para combater o crime, o melhor que se pode ter atualmente em matéria penal talvez esteja na troca de informações e na cooperação jurídica internacional entre os diferentes Estados.
Tracy Reinaldet, doutor em Direito Penal e Ciências Criminais pela Université Toulouse 1 Capitole em cotutela com a UFPR, foi recentemente convidado para atuar como representante do Brasil no Comitê Permanente da América Latina para a Prevenção do Crime (Coplad), ligado ao Conselho Econômico e Social da ONU.