A Operação Lava Jato desmontou o maior esquema de corrupção conhecido na história da humanidade. Entretanto, desde meados de junho temos assistido a uma bizarra tentativa de se comprometer a legalidade dessa corajosa iniciativa e a lisura de seus principais agentes.
A sequência de fatos, concentrados em um intervalo de várias semanas, pode ser assim sintetizada: 1. os celulares de Sergio Moro e do procurador Deltan Dallagnol foram hackeados, 2. um site passou a publicar pretensas mensagens trocadas entre os dois, insinuando que havia conluio entre o juiz e o Ministério Público para condenar criminosos hoje encarcerados e alguns já condenados até em terceira instância, 3. apesar de o site em questão ser desconhecido do grande público, das sabidas ligações desse mesmo site com políticos da esquerda e das dúvidas que cercavam a origem e autenticidade das mensagens hackeadas, veículos da mídia repercutiram insistentemente a “possível atuação ilegal” dos membros da Lava Jato, 4. além de não haver nenhuma confirmação sobre a autenticidade das mensagens, nenhuma mensagem divulgada – verdadeira ou não – indicou qualquer irregularidade ou conluio por parte de Moro ou Dallagnol; 5. senadores submeteram Moro a intermináveis horas de provocações na CCJ do Senado; 6. centenas de milhares de brasileiros foram às ruas para demonstrar apoio à Lava Jato e a Moro; 7. deputados atacaram e ofenderam Moro na CCJ da Câmara; 8. jornalistas do site envolvido com a divulgação das pretensas mensagens hackeadas foram gravados confessando que elas estavam sendo editadas; 9. vários jornalistas da mídia nacional e correspondentes de veículos internacionais continuaram a ecoar intensamente a narrativa de que Moro e Dallagnol tiveram mensagens divulgadas, insinuando irregularidades sem entrar no mérito do conteúdo ou da ilicitude de sua obtenção; e 10. apesar de claramente não comprometerem em nada Moro, Dallagnol e outros procuradores – ao contrário, pois o pretenso conteúdo vazado só reforça a retidão da atuação dos membros da Lava Jato –, novas ondas dessas supostas mensagens foram vazadas não apenas pelo site original, mas também por meio de parceria surpreendente daquele com alguns veículos da grande mídia.
Não bastasse a ilegalidade na obtenção das mensagens, foi nauseante perceber a tentativa de se criar a impressão de que a Lava Jato avançou com base em comportamentos inadequados ou ilegais por parte de seus protagonistas, embora nenhum fato ou conversa trazido ilegalmente à tona apontasse para isso. Dessa forma, ficou patente a busca da persuasão fundamentada em nada mais do que indícios irrelevantes e manipulados. Felizmente, o complô fracassou de modo retumbante e o círculo parece se fechar em torno dos hackeadores e daqueles que contrataram seus “serviços”. Passado o mal-estar, resta o desafio de se compreender o fenômeno, para que estejamos vacinados por ocasião de qualquer nova tentativa sórdida de subversão da verdade.
Ficou patente a busca da persuasão fundamentada em nada mais do que indícios irrelevantes e manipulados
Uma perspectiva interessante vem da análise feita pelo comentarista político e cartunista americano Scott Adams para o caso do pretenso conluio de Donald Trump com os russos para ganhar a eleição de 2016. Fundamentado em conceitos originados pelos pesquisadores Peter Wason (University College London), Leon Festinger (MIT), Robert Cialdini (Arizona State University) e Dan Ariely (Duke University), Adams aponta que não são os fatos que predominam na construção de nossa visão da realidade, mas nossas posições e opiniões prévias e a capacidade de persuasão daqueles a quem ouvimos. “A visão de mundo do filtro de persuasão é de que somos irracionais 90% do tempo. E uma das maiores fontes dessa irracionalidade é a dissonância cognitiva.” A dissonância cognitiva acontece quando enfrentamos uma situação em que nossas crenças e valores são desacreditadas pelos fatos e dados, e reagimos distorcendo, desqualificando ou simplesmente rejeitando tais fatos e dados.
Por consequência, os fatos acabam sendo recorrentemente menos importantes que a capacidade de persuasão. Assim, na guerra da persuasão, a realidade objetiva e os fatos são quase sempre secundários. Numa guerra suja de persuasão, o importante é a criação das narrativas e sua sustentação por meio de “informações” e “análises” francamente enviesadas ou sem lastro efetivo na realidade, ao gosto do alinhamento daqueles que produzem e emitem as mensagens com o objetivo explícito de distorcer os fatos e a história – e que acabam encontrando ouvidos previamente inclinados a assimilar tais versões, sem um crivo minimamente racional.
No caso do suposto conluio russo, Adams sustenta que cerca de um terço da população dos Estados Unidos ficou genuinamente apavorada com a ideia de que seu presidente havia conspirado com os russos – mesmo na ausência de fatos que sustentassem tal interpretação. Em resumo, no caso americano, a cadeia de causa-e-efeito seguiu o seguinte fluxo: 1. membros do partido e da campanha democrata fizeram um ótimo trabalho ao disseminar supostos indícios de conluio de Trump com os russos, tentando enfraquecê-lo ao máximo e, eventualmente, levar à sua renúncia ou destituição; 2. a mídia enviesada “retratava as coisas da pior maneira possível”, amplificando e ecoando a imagem de que “Trump era um monstro”; 3. uma parcela significativa da população, confiando na mídia reativa a Trump, foi persuadida e acabou acreditando na conspiração de seu presidente e desejando que ele fosse derrubado; 4. finalmente, a persuasão perdeu sustentação depois de dois anos de investigação, fazendo ruir as pretensões de retomada de poder dos políticos opositores e de restabelecimento hegemônico da visão política, ideias e valores dos simpatizantes e militantes do Partido Democrata.
No caso americano, a investigação do Departamento de Justiça não encontrou nenhuma evidência de que Trump ou qualquer um de seus auxiliares tenha se associado ao governo russo para interferir nas eleições. No caso brasileiro, nenhum indício de irregularidade foi encontrado nos sucessivos vazamentos dos hackers e, em 3 de setembro, o desembargador João Pedro Gebran Neto, do TRF4, decidiu que as mensagens hackeadas são claramente ilegais e que não podem ser utilizadas em uma ação penal.
Tanto num caso quanto no outro, o viés de relevante parcela dos profissionais da mídia e sua patente aversão a iniciativas e governos descolados de sua visão de mundo parece estar na base dessas tentativas farsescas de reconstrução da realidade. Concordando com Adams, as ideias de Wason, Festinger, Cialdini e Ariely parecem nos ajudar a compreender os dois eventos acima destacados. Talvez elas também nos ajudem a compreender por que temos vivenciado uma sensação de crise permanente e de que nada de positivo repercute desde que foi instalado o novo governo. Esperemos que a realidade dos fatos sempre prevaleça sobre as tentativas canhestras de persuasão.
Fabio de Biazzi, engenheiro de Produção e doutor pela Escola Politécnica da USP, é professor de Liderança e Comportamento Organizacional do Insper.