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O ano de 1939, que marca o início da Segunda Guerra Mundial, também carrega consigo outros dois significados para as Relações Internacionais: primeiramente, é o ano em que se publica Vinte Anos de Crise, obra de Edward Carr que inaugura a ciência contemporânea da política internacional; em segundo lugar, e em decorrência dessa obra, seria também o ano em que se encerraria, finalmente, o século XIX.
É natural se mostrar confuso frente a essa última afirmativa, uma vez que, oficialmente, o século XIX teria terminado em 1900, ou seja, trinta e nove anos antes. No entanto, repousa aí a importância da obra de Edward Carr para as Relações Internacionais: ele teria sido o primeiro a compreender que a vontade dos líderes políticos em prolongar a ordem internacional do século anterior, no ilusório projeto da Liga das Nações, não apenas teria forjado como vivo um mundo que não existia mais, como também teria provocado a guerra mais extrema já vista – o último suspiro, saturado, do passado.
Recuperar o Edward Carr de 1939 e retratar a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), como o pano de fundo da Guerra na Ucrânia, em 2022, talvez não sejam tópicos tão distantes um do outro, ainda que eles, curiosamente, estejam separados pelo período de quase um século. A Otan, da qual não se falava tanto nas últimas décadas, retornou aos noticiários, também como um suspiro anacrônico: a aliança militar estaria motivando a Rússia a invadir a Ucrânia, antes que ela aderisse à organização de defesa mútua; a Finlândia e a Suécia, que optavam por tradicional neutralidade na região, passariam a rever tal posição, ao oficializar pedido de entrada ao acordo – coisa que não se viu nem na Guerra Fria.
O suposto anacronismo se dá pelo fato de que a assinatura originária do Tratado do Atlântico Norte, em 1949, remonta o término da Segunda Guerra Mundial, quando a União Soviética, uma das grandes potências a derrotar Hitler, passou a ser vista como forte ameaça à Europa Ocidental e aos Estados Unidos da América, também vitoriosos na guerra. Trata-se, portanto, de uma aliança político-militar que reconfigura as relações entre os Estados na direção de uma Guerra Fria que se formava a partir de dois polos: de um lado, os Estados Unidos, superpotência ocidental que encabeçaria a Otan; de outro, a União Soviética, que expandia sua influência na Europa centro-oriental a partir do Pacto de Varsóvia, de natureza análoga à da Otan.
A ordem internacional, orientada a partir das duas novas alianças militares, concluía, de fato, aquela ordem que se prolongava desde o século XIX e que culminava na Segunda Guerra, pautada ainda pela liderança dos tradicionais países europeus. Evidência disso é que o desfecho da guerra não teria sido conquistado por eles, mas pelos Estados Unidos da América e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que detinham capacidades econômica e militar superiores. São eles que definirão a dinâmica política do novo século (já quase em sua metade) e que transformarão a sociedade internacional a partir de novas ideologias e tecnologias, sobretudo militares.
Questiono, assim, se, hoje, não cometemos o equívoco que Edward Carr havia atribuído aos vinte anos de crise entre as guerras mundiais, de negação da nova ordem que ascendia. Não seria isso o que fazemos quando continuamos interpretando, em 2022, a expansão da Otan ao Leste Europeu com as lentes políticas oriundas do século da Guerra Fria? O que observamos, é que não há mais União Soviética, tampouco Pacto de Varsóvia; não há a mais ameaça que Stalin representava ao ocidente – mesmo que Putin busque desestabilizar sua zona de influência; do mesmo modo, os próprios Estados Unidos não são mais consenso enquanto potência no bloco ocidental. Por que, então, ainda enxergamos o mundo com os olhos do século XX?
A ciência das Relações Internacionais, criada por Carr como uma ciência realista, instiga-nos a abandonar as ilusões e o conforto de interpretar o mundo a partir apenas do que nos é conhecido; obriga-nos a aceitar as transformações – manifestas nas ascensões e nos declínios das potências que, apenas no passado, lideravam. Infelizmente, se Carr estiver correto, a negação e a resistência em aceitar as mudanças não evitarão que elas aconteçam. Foi o que vimos com o declínio da Europa ocidental, que perdeu o posto de liderança internacional a duras penas. Hoje, adentramos uma nova ordem internacional, própria ao século XXI, que ainda é incerta. Sabemos, porém, que se continuarmos olhando para trás, também teremos nossos vinte anos de crise pela frente.
Henrique Raskin é doutor em Filosofia e coordenador do curso de Relações Internacionais na Universidade Positivo (UP).