É evidente que o Ministério Público Federal tem uma penca de argumentos legais para solicitar o fim da Operação Asfixia empreendida pelo Exército em diversas favelas da antiga Cidade Maravilhosa. Mas é evidente que o Executivo dispõe de um acervo ainda maior de alegações para amparar a intervenção branca no estado do Rio de Janeiro. A primeira justificativa, mais óbvia, é a recuperação das armas roubadas de um quartel, a última é gritante: o Rio está abandonado, entregue ao narcotráfico e a família reinante, os Garotinho, não quer envolver-se com a questão da violência por isso dá apoio ostensivo a ação do Exército.
A batalha iniciada na madrugada desta quinta-feira no Morro da Providência, zona central da cidade, entre soldados, policiais e traficantes demonstra claramente que a intervenção federal não pode nem deve ser interrompida. Ao contrário, precisa ser formalizada e intensificada. Se a pusilanimidade do clã Garotinho transformou o Rio numa cidade aberta e sitiada, o desnorteamento do governo Lula, preocupado apenas com a reeleição, situa o problema na véspera do caos e da ruptura.
Certas reações à Operação Asfixia estão desvendando um problema detectado há anos, noticiado com timidez, mas que poucos tem coragem de encarar, muito menos escancarar: a bandidagem politizou-se. A arma secreta dos traficantes fluminenses é o apoio de pequenos grupos de moradores não apenas para fornecer o apoio logístico às suas operações, mas para manter aceso o estopim de um confronto civil.
Os dez fuzis automáticos e a pistola roubados do depósito do Exército em São Cristóvão no dia 3 de março são estrategicamente menos importantes para as facções criminosas do que a violenta reação que o assalto provocaria com os inevitáveis protestos orquestrados pelos chefões do tráfico.
Esta adesão militante de grupos de favelados ao narcotráfico não se resolve com a distribuição de folhetos em áreas onde as forças de segurança procuram reafirmar a presença do Estado de Direito. Este é um desdobramento que exige uma ação política inteligente, sofisticada e que só um governo cônscio da sua legitimidade tem condições de acionar.
Não é o caso da atual equipe que comanda o Executivo federal. Há dez meses assistimos às manobras do governo para legalizar o ilícito do caixa 2. A operação de salvamento dos mandatos de Roberto Brant e Professor Luizinho enquadra-se numa grande estratégia concebida pelo ministro da Justiça para descriminalizar a corrupção eleitoral.
O Planalto não está pensando em salvar cabeças de correligionários e aliados mas em tornar corriqueiros e aceitáveis os vícios institucionais. À medida que se amplia e se consolida a noção de que as transgressões políticas são inevitáveis, cria-se uma proteção natural para as ameaças que poderão aflorar nos relatórios finais das CPIs. Nota 10 em matéria de sobrevivência, nota 0 em matéria de legalidade.
Mas num panorama marcado por prevaricações e vacilações na esfera criminal e onde todos estão fragilizados pela incerteza inclusive o comando do Exército e o governo central, apesar das pesquisas de opinião não convém esperar murros na mesa nem políticas firmes e duradouras capazes de enfrentar a guerrilha do narcotráfico.
A bandidagem também lê jornal, ouve rádio e assiste à tevê. Também ela sabe que tanto Garotinho como Lula estão mais empenhados nas eleições de outubro do que numa política de segurança de longo prazo apta a reverter a hegemonia das facções criminosas no Rio de Janeiro e que, certamente, produzirá desgastes em segmentos da população vitais para ambos.
É imperioso proteger aqueles que vivem na terra de ninguém entre o crime e o Estado organizado. Mas é indispensável reconhecer que as ameaças aos direitos dos favelados foram iniciadas e são mantidas por aqueles que exploram sua miséria em benefício do crime.