O longo título desse artigo é necessário: era essa a pergunta que certa vez fiz aos meus alunos na universidade. Apesar do esforço de alguns, a única resposta possível seria, mesmo que a contragosto, “sim”.
A ideia, para muitos deles tão preciosa, de que a vida em sociedade é marcada por um inevitável relativismo social, e que todos os costumes e instituições não passam de meras construções sociais seria, como os mais atentos perceberam, abalada em sua condição de verdade inabalável. Afinal, esquimós, maoris, hmongs, hutus e outras tantas culturas não ocidentais certamente não questionam a validade de suas próprias instituições, ou muito menos perceberiam esse questionamento, se existisse, como sendo também ele uma construção social. Duvidar até mesmo daquilo que permite a formulação de dúvidas parece ser um privilégio da cultura ocidental.
Contudo, pode bem ser o caso de não nos preocuparmos tanto com o fato de nossas atitudes e costumes serem construções sociais; inclusive porque, mesmo sendo, não necessitarem estar sob constante suspeita: na quase totalidade dos casos, é precisamente a existência de construções sociais que torna possível a vida em comum.
Assim como em outras culturas existem as mais singulares ideias a respeito das mais variadas coisas; também a nossa, por mais que nela seja apreciada e cultuada a ciência, não está isenta de semelhantes inclinações. Claro, essa última afirmação poderia ser também vista como prova de que, afinal, tudo é mesmo relativo. E seria, pelo menos de início, mais fácil entender o mundo se assim fosse: apertar a tecla “isso é uma construção social” é um dos mais superficiais modos de conferir ares de profundidade a uma discussão.
O problema começa com a perturbadora contradição: enquanto os que não fazem parte do meu grupo possuem construções sociais, os do meu grupo possuem verdades científicas. Foi Paul Feyerabend, filósofo austríaco falecido em 1994 quem concluiu, ao longo de inúmeros debates com outros autores, que não é a ciência senão uma entre outras formas de conhecimento e que não deveria possuir uma condição tão privilegiada entre nós.
Contudo, uma diferença relevante entre a cultura ocidental e quase todas as outras culturas é a de que procuramos compreender como são e funcionam outras sociedades humanas. Para tanto existem, no mundo ocidental, serviços e instituições como departamentos universitários, museus, agências de turismo, serviços de imigração, tradutores, etc. O mais frequente, no caso de outras culturas, é o mundo ser simplificadamente compreendido em duas partes: existe o nós e existem os outros; que por mais distintos e particulares que sejam, receberão essa designação genérica que implica elevado grau de desinteresse de conhecimento. No limite, por exemplo, os inacessíveis habitantes das Ilhas Sentinela, a sudeste da Índia, que não admitem qualquer contato com outros povos. Na prática, aliás, seriam eles os mais radicais opositores do multiculturalismo.
Com a pergunta inicial se pretendia demonstrar duas coisas. Primeiro, que ainda não nos elevamos acima de todas as outras culturas, a ponto de algumas ideias, inclusive a de que nossos costumes não passariam de meras construções sociais, poderem ser consideradas definitivas e absolutas. Nosso altruísmo cultural (ou multiculturalismo), ainda que sofisticado, é ele próprio uma construção social. Segundo e principalmente, que construções sociais, apesar de muitas vezes incômodas na perspectiva do indivíduo, existem justamente por sua capacidade de cumprir as necessidades mais amplas do grupo. Sua simples existência já nos permitiria suspeitar que funcionam melhor que as alternativas.
Diversos autores se dedicaram a entender o que viria a ser construções sociais, dando-lhes o nome de fatos sociais ou instituições, no caso de Émile Dukheim; relação social, em Max Weber, e recentemente, imaginação social, para o midiático Yuval Harari. Conceitos que guardam entre si muito mais semelhanças que diferenças. Uma inteligência comum que resulta da contínua interação entre os membros do grupo. E que produz soluções para os mais diversos problemas, podendo, naturalmente, serem desfeitas e substituídas por outras soluções. De forma espontânea (pela aproximação entre duas culturas diferentes, muitas vezes) ou planejada (o controle de natalidade na China, por exemplo). A questão, nos casos planejados, é saber se o autor da escolha e responsável pela mudança, possui a virtude da infalibilidade.
Stalin, Hitler, Pol Pot, Mao Tse Tung, Abimael Gusmán, Kim Il-sung e outros acreditavam possuir o dom da infalibilidade; e o resultado de seus projetos podem ser encontrados em muitos livros de história. O problema que todos eles tentaram resolver, significando isso frequentemente excluir, oprimir, assassinar, mentir, etc, foi brilhantemente descrito por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo: nesse livro, o administrador da forma ideal de vida planejada chama-se Mustapha Mond. As discussões entre este e o Selvagem, representante do antigo mundo humanizado, estão entre as melhores e mais perturbadoras discussões sobre o assunto que a literatura já produziu.
Ainda que seja cada vez mais e aterradoramente possível viver como os que viviam sob controle da sociedade imaginada no livro, tal escolha não foi perfeitamente feita. Da imperfeição de muitos de nossos costumes e instituições resultam, por mais estranho que isso possa parecer, o mais pleno e grandioso sentido de nossas vidas.
Talvez, para alguns alunos, eu tenha conseguido demonstrar esse sentido imperfeito e ao mesmo tempo completamente necessário de muitas construções sociais. Desde a maternidade (que é a um só tempo instinto e construção social) até nossos hábitos alimentares: talheres como garfo e faca são, por exemplo, construções sociais muitíssimo bem sucedidas, considerando que os usamos mesmo não havendo nenhuma lei que nos proíba de comermos com as mãos. Por outro lado, preferimos mastigar calmamente os alimentos de um almoço a usarmos a praticidade de colocarmos tudo num liquidificador (um mastigador automático!) que os transformaria rapidamente em creme pronto para ser bebido em poucos segundos. Diante da inconveniente complexidade apresentado pelo problema, surgiu então uma obstinada defesa de que tudo no comportamento humano se constitui em construções sociais: além da maternidade (não obstante as objetivas evidências da paleontologia), também o andar bípede (na medida em que “bem poderíamos” nos locomover engatinhando) e mesmo nossa opção de enxergar seriam construções sociais. Para esses últimos casos, e como diria Schopenhauer, “que o céu nos dê paciência”.
A dificuldade de se compreender a natureza a um só tempo imperfeita e necessária de boa parte das construções sociais parece, por fim, também ter relação com o nosso tempo e nossa cultura. Como foi observado no início deste texto, aquilo que nos permite duvidar daquilo que não seria nem razoável nem necessário duvidar. Assim como também a crença do indivíduo de que ele pode tudo e tudo é feito para sua satisfação, como bem ilustram os slogans da publicidade: “só o melhor para você”, “o mundo é seu”, “pensando em você”, “o nosso maior segredo é você”, “a gente se liga em você”, “feito para você”, “você pode ser o que quiser”, etc. Ilustração bastante sugestiva, considerando ser característico da publicidade o reforço de tendências existentes. É possível imaginar, como o personagem de Monteiro Lobato, que seria muito mais racional que uma pesada melancia crescesse numa jabuticabeira e uma delicada jabuticaba crescesse numa ramagem de melancia... Mas, como logo em seguida o próprio personagem da história descobre, teorias não testadas são um grande perigo e talvez seja melhor sermos menos arrogantes e presunçosos.
Fábio Viana Ribeiro, sociólogo, doutor em antropologia pela PUC/SP e professor associado da Universidade Estadual de Maringá.
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