| Foto: Albari Rosa/Foto Digital/Gazeta do Povo
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Há quase uma década me dedico a investigar o caso Escola Base, que culminou num estudo que entrevistou os protagonistas do que foi considerado o mais triste episódio da história do jornalismo brasileiro. No caso em tela, ocorrido em 1994, os donos de um educandário infantil localizado no bairro do Cambuci, Zona Sul de São Paulo, foram acusados por duas mães de abusarem sexualmente de alunos. A denúncia lançou não só holofotes midiáticos, mas também incenso no ego do delegado do caso. Provas? Respondeu ele: “O inquérito é a prova”.

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Analisando friamente, muitas das acusações eram desde logo inverossímeis e até mesmo contraditórias. Havia alegações, por exemplo, de orgias dos professores com as crianças e a única “prova” concreta dos supostos abusos seria a existência de fissuras no reto de uma delas, “compatíveis com atos libidinosos”, mas também compatíveis com problemas intestinais – o que de fato era o caso.

Apesar disso, jornais e telejornais alardearam os nomes, fisionomias e endereços dos acusados como criminosos. Entretanto, após séria investigação policial, o caso foi arquivado por ausência de provas, os proprietários foram inocentados e diversos veículos de imprensa foram obrigados a indenizá-los. Quase três décadas desde o episódio, os estragos ainda permanecem na vida das famílias envolvidas.

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A pergunta que mais ouço sobre o tema é: a imprensa aprendeu algo com o caso da Escola Base? Infelizmente, a resposta continua negativa. Tal tese pode ser comprovada por uma breve olhada no noticiário. Dois casos recentes envolvendo menores de idade e escolas ganharam forte repercussão: o primeiro é de uma creche na capital paulista, a Colmeia Mágica, cuja diretora é acusada de torturar bebês; o segundo versa sobre colégios ligados aos Arautos do Evangelho, na região metropolitana de São Paulo, com denúncias de tortura, assédios e até estupro e assassinato.

A forma como ambos os casos têm sido retratados recordam muito o episódio da Escola Base: ouve-se quase exclusivamente os alegantes; as denúncias são apresentadas como provas incontestáveis, mesmo sem indícios consistentes; os endereços das escolas são divulgados, oferecendo ao público a oportunidade de, tal como aconteceu na Escola Base, depredar, invadir e até mesmo saquear o local “em nome da justiça”; supostos crimes anteriores são “desenterrados” sem relação com as atuais acusações, confundindo a lógica das reportagens. Chegou-se ao ponto de, mesmo depois de a Justiça ter julgado improcedentes os mencionados crimes de estupro e de assassinato, certos veículos insistirem em adotar a versão dos acusadores.

A presente crítica aponta não para as denúncias em si – indispensáveis para o bom funcionamento de uma sociedade –, mas sim para a cobertura pouco criteriosa de alguns jornalistas. Por vezes, pelo teor das reportagens, percebe-se o gosto pelo sensacionalismo, que, em vez de gerar o desejado engajamento, provoca ainda mais desconfiança da população nos órgãos de comunicação. De fato, em janeiro de 2022 apenas 21% dos brasileiros confiavam muito na imprensa.

Preocupa-me não somente o fato de a imprensa ter aprendido pouco ou quase nada com o caso da Escola Base, mas também a possibilidade de reviver casos semelhantes. Mas como, então, pautar o jornalismo investigativo? Certamente não apenas em simples denúncias; cabe aos jornalistas se questionarem se estão servindo de ferramenta de ataques por pessoas que simplesmente desejam atacar instituições, vingando-se de fatos ou pessoas.

Jornalismo não é denuncismo; jornalismo é apuração, ouvir com isenção todos os lados envolvidos e apresentar ao público o resultado de um sério trabalho de reportagem. Caso contrário, estaremos apenas recriando novas Escolas Base.

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Emílio Coutinho é jornalista, mestre em Jornalismo, professor universitário e autor de “Caso Escola Base: Onde e como estão os protagonistas do maior crime da imprensa brasileira”.