Alguns sites da internet que concedem destaque aos assuntos políticos publicaram uma informação que, pela sua importância, merece atenção e exame. Ela diz respeito ao envio, por parte do atual governo, de uma carta ao relator da Organização das Nações Unidas, em novembro, sobre os 20 anos de regime militar. Seu conteúdo inclui uma resposta pertinente a uma cobrança sobre a necessidade de salvaguardar a memória do país relativa a estes anos.
Vários articulistas que abordaram tal informação relataram diversos trechos contidos na carta, e um deles se revela como novidade, pois diz que o lapso em questão se caracterizou como um “período de luta política”. Esta menção aparece na parte referente aos arquivos que abrigam documentos sobre a vigência da governança castrense. Especificamente, fala “sobre o tema das lutas políticas no Brasil (1964-1985)”. Tal menção, embora não seja inverídica, expressa apenas um aspecto do que ocorreu na época e não exprime a sua substância.
Certos argumentos contrários foram expostos, tais como “existe um projeto destinado a negar a existência da ditadura no Brasil”, “A expressão nunca foi utilizada durante este período”, “A luta política implica a existência de uma ameaça comunista que nunca existiu” ou “É uma tentativa de redefinir o que ocorreu no país naqueles anos”.
Cabe lembrar que há dois anos ocorreu algo semelhante. Naquela data foi enviado um telegrama à ONU, afirmando que em 31 de março de 1964 não houve um golpe de Estado e que os 20 anos de governos militares foram necessários “para afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista do Brasil e garantir a preservação das instituições nacionais no contexto da Guerra Fria”. O referido telegrama foi uma resposta às críticas feitas pelo mesmo relator sobre as celebrações previstas para comemorar a data, consideradas por ele como “imorais e inadmissíveis”.
Vale observar também que a denominada “ordem do dia” expedida anualmente e lida nos quartéis recorrentemente insiste na ameaça comunista. A apresentada em 2019, por exemplo, que é representativa das demais, em um de seus trechos, referente a uma suposta escalada do totalitarismo, assevera que “as Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo”. Outro trecho afirma que as três forças “reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da nação brasileira”. Após ser publicada, muitas reações contrárias emergiram. A Defensoria Pública da União, o Instituto Vladimir Herzog e alguns parentes de vítimas entraram com ações na Justiça Federal e no Supremo Tribunal Federal pedindo que o governo seja proibido de celebrar a data.
Tais acontecimentos mostram claramente que existe uma reiterada desavença entre civis e militares, cuja origem remonta ao período dos governos militares, e que precisa ser superada para o bem de todos e do nosso país. É preciso ressaltar que um dos aspectos fundamentais relativos à manutenção e ao fortalecimento do regime democrático em qualquer nação do mundo, particularmente a nossa, diz respeito à vigência de relações harmônicas e cordiais entre paisanos e fardados.
Os dois mais destacados representantes da sociologia militar, Huntington e Janowitz, apresentaram suas propostas para alcançar tal intento. O primeiro receitou que os fardados devem desenvolver um alto nível de profissionalismo, reconhecer os limites de sua competência ocupacional, subordinar-se aos líderes políticos civis e impedir ou minimizar a intervenção castrense na política. Por sua vez, os civis devem conceder autonomia profissional aos fardados, aceitar e legitimar a competência ocupacional deles, e não permitir ou incentivar a intervenção política nas Forças Armadas. O segundo enfatizou a aproximação cada vez maior entre paisanos e fardados e a progressiva revogação da distinção entre civis e militares.
Parece indubitável que o seguimento dessas propostas é capaz de materializar o adequado e consoante intercâmbio entre os dois grupos. Embora nem todas as sugestões apresentadas por eles sejam devidamente seguidas, é possível colocá-las em prática desde que seja ultrapassada a desavença que se estabeleceu a partir da década de 60 do século passado. Vale realçar que esta superação não pode ser vista como vitória versus derrota, mas como uma reconciliação entre os divergentes. Assim sendo, os civis devem reconhecer que os militares reagiram a partir de uma leitura que fizeram da realidade, a qual, como qualquer outra, se caracteriza pela originalidade e singularidade.
Por sua vez, os militares devem caminhar em outra direção. Por valorizarem a ciência e prezarem o conhecimento e o pensamento científico, eles admitem que os resultantes da atividade de pesquisa são considerados como verdades duradouras e que as investigações realizadas pelos cientistas com base em referenciais teóricos estabelecidos e metodologia consagrada são responsáveis pela produção do saber verídico. Assim sendo, eles precisam assumir que, embora inexista a neutralidade científica, o conhecimento científico constitui a expressão da verdade.
Portanto, precisam abandonar a crença de que o que aconteceu entre 1964 e 1985 gerou a construção de uma narrativa inconsistente e tendenciosa por parte dos civis, narrativa que eles não aceitam. Precisam acatar, então, que a versão exposta pelos civis é fruto de exaustivas pesquisas feitas por historiadores, antropólogos e sociólogos, e não uma mera narrativa corrompida por ideologias nocivas. É essencial ficar claro que este acatamento não significa, em hipótese alguma, uma derrota para os militares, mas uma correta rendição à ciência, um ato de elevada lucidez capaz de garantir a imprescindível reconciliação com os civis em benefício de todos e do país.
Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em Educação e autor de “Democracia e Ensino Militar” e “A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania”.
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