O ressentimento islâmico em relação aos valores ocidentais não se manifesta somente nos hediondos ataques terroristas perpetrados em diversos países, notadamente os da Europa. Esses atos não são algo marginal em relação à cultura islâmica, que supostamente seria pacífica, diplomática e negociadora. Não, o mundo ocidental é o mundo dos infiéis, que precisam ser submetidos à lei divina, a única que conta entre os fiéis islâmicos. O Islamismo não separa – eis o problema fundamental – a esfera pública da esfera privada: Estado e religião são uma só coisa. Alcorão acima de tudo.
Alguns estudiosos corroboram essas assertivas. Atenho-me a três deles: o historiador Bernard Lewis, profundo conhecedor das questões do Oriente Médio e do mundo árabe, que, livro a livro, analisa as raízes históricas do ressentimento muçulmano em relação ao “mundo infiel”; Ayaan Hirsi Ali, que escreveu vários livros críticos sobre sua religião, viveu na pele a rigidez islâmica e é crítica feroz e consistente do Islamismo, além de atacar a doutrina politicamente correta dos governos ocidentais, que se recusam a ver na religião a matriz de grupos terroristas como Al-Qaeda e Estado Islâmico; e o filósofo Roger Scruton, que conclama os ocidentais à defesa de seus valores liberais, democráticos e éticos e a resistir duramente aos ataques contra o Ocidente.
Pode-se dizer que o radicalismo antiocidental cresceu com Sayyd Qutb, como mostra Bernard Lewis em seu livro A Crise do Islã. Guerra Santa e Terror Profano. Qutb, que morou algum tempo nos Estados Unidos, detestava o modo de vida norte-americano, “principalmente em seus aspectos pecaminosos e degenerados”, como a “promiscuidade sexual”. O fundamentalista egípcio sempre contrastou a “espiritualidade oriental e o materialismo ocidental”, descrevendo os Estados Unidos como “uma forma particularmente extremada do último”. Condenou a “libertinagem” que via nos salões de dança, boates e outros locais de encontro dos jovens. “Esse ponto de vista do Ocidente e de seus costumes”, conclui Lewis, “pode ajudar a explicar por que os terroristas devotos veem como alvos legítimos exatamente esses locais”.
Vale lembrar que Qutb, eminente ideólogo da Irmandade Muçulmana, foi condenado à morte em 1966 por ter planejado o assassinato do presidente Nasser. Suas ideias, no entanto, vicejaram junto a organizações terroristas como a Al-Qaeda, de Osama Bin Laden.
O fato é que o próprio Islã é uma religião guerreira, cujo horizonte é a jihad, a “guerra santa” islâmica.Bernard Lewis menciona a existência, no Islã, de uma “Casa da Guerra” e uma “Casa do Islã”: “Durante a maior parte dos 14 séculos de história muçulmana registrada, a jihad foi mais comumente interpretada como luta armada para defesa ou aumento do poder muçulmano. Na tradição muçulmana, o mundo é dividido em duas casas: a Casa do Islã (Dar al-Islam), na qual existem governos muçulmanos e onde prevalece a lei muçulmana; e a Casa da Guerra (Dar al-Harb), o resto do mundo, ainda habitado por infiéis e, mais importante, sob governos infiéis. A presunção é que a obrigação da jihad continuará, interrompida apenas por tréguas, até que o mundo todo adote a fé muçulmana ou se submeta ao mando muçulmano. Aqueles que lutam na jihad qualificam-se para recompensas nos dois mundos – butim neste, paraíso no próximo”.
O Alcorão fala tanto de paz quanto de guerra. As palavras atribuídas ao profeta Maomé permitem uma ampla variedade de interpretações, inclusive aquela que justifica a conduta violenta dos fiéis. Lewis observa que, para que se chegue ao terrorismo, basta que alguns poucos muçulmanos sigam rigidamente essa interpretação.
Ayaan, o Alcorão e o terrorismo islâmico
Ayaan Hirsi Ali nasceu na Somália e acompanhou a família até a adolescência, vivendo no Quênia, na Etiópia e na Arábia Saudita. Filha de um mundo tribal e islâmico, sofreu mutilação genital na infância e só sentiria o ar da liberdade ao fugir de um casamento predeterminado pelo pai. Foi parar na Holanda e, depois de estudos sobre a cultura europeia e trabalhos junto aos refugiados africanos, acabou se envolvendo na política partidária. Obtida a cidadania holandesa, foi eleita deputada, com fino olhar crítico para o multiculturalismo europeu, que via com condescendência a manutenção, pelos imigrantes, de sua própria cultura, sem integração aos valores ocidentais.
Ayaan passou a criticar justamente esse relativismo multiculturalista. Estudando os filósofos clássicos, espantou-se com a descoberta de um mundo novo, onde a mulher não era um ser inferior, condenada à submissão ao marido e à religião, não raro cruéis. Sua atuação no parlamento e na imprensa obrigou-a a se esconder por algum tempo no interior da própria Holanda (a liberal Holanda), ameaçada pelos extremistas islâmicos. No fim, não lhe restou outra alternativa a não ser refugiar-se nos Estados Unidos, onde passou a viver sob proteção policial. Seu amigo Theo van Gogh, para quem escrevera o roteiro do curta-metragem Submissão, fora assassinado por islâmicos numa rua de Amsterdã. A faca que os fanáticos cravaram nas costas do cineasta, junto com um bilhete, deixava claro: os muçulmanos da África queriam a cabeça de Ayaan.
No fatídico 11 de setembro de 2001, embora já vivesse na Holanda, Ayaan ainda não tinha rompido com o Islã. O ataque às torres gêmeas de Nova York não lhe deixou mais dúvidas: havia algo profundamente perturbador na cultura islâmica. Algo perceptível no comportamento de Mohamed Atta, o chefe dos terroristas que sequestraram os aviões dirigidos contra as torres: “Mohamed Atta os havia instruído para ‘morrer como bons muçulmanos’. Usara a oração que todo maometano murmura na hora da morte, pedindo amparo a Alá no momento em que ele vai ao Seu encontro. Eu a li e a reconheci. O tom e a substância daquela carta me eram muito familiares. Não se tratava meramente do Islã. Aquele homem acreditava piamente que estava dando a vida por Alá. Mohamed Atta tinha exatamente a minha idade. Era como se eu o conhecesse de fato, pois conhecia muita gente como ele”.
De onde vinha tanto ódio ao mundo ocidental? Ayaan não tergiversa: “Ao declarar o profeta infalível e proibir questioná-lo, nós, maometanos, instituímos uma tirania estática. O profeta Maomé procurou legislar sobre cada aspecto da vida. Ao aderir à noção do permitido e do proibido, nós, muçulmanos, renunciamos à liberdade de pensar e de agir por livre escolha. Fixamos a visão moral de bilhões de seres humanos na mentalidade do deserto árabe do século 7.º. Não éramos apenas servos de Alá, éramos escravos”.
Longe de ser pacífico, como pensavam tantos muçulmanos de boa-fé, “o verdadeiro Islamismo, como um rígido sistema de fé e estrutura moral, levava à crueldade. O ato desumano daqueles 19 sequestradores era o resultado lógico desse minucioso sistema de regulação do comportamento humano. Seu mundo se dividia em ‘nós’ e ‘eles’ – quem não aceitasse o Islã tinha de perecer”.
Eis a conclusão de Ayaan, em seu livro autobiográfico Infiel: “logicamente, para pensar assim, precisei dar um grande salto e passar a acreditar que o Alcorão era relativo – não absoluto, não as palavras literais proferidas por Deus, e sim um livro, um livro a mais”.
O Islamismo e a civilização ocidental segundo Scruton
Também o filósofo Roger Scruton demonstrou a incompatibilidade entre o Islã e os valores ocidentais. No ensaio O Islã e o Ocidente, publicado em 2009 (no Brasil, pela revista Dicta&Contradicta), o pensador aborda as características fundamentais do patrimônio ocidental, que “devem ser compreendidas e defendidas no atual confronto”.
A primeira dessas características é a cidadania, isto é, o direito e o dever de participação, traço fundamental do Ocidente. A diferença entre as comunidades políticas e religiosas reside, precisamente, no fato de que as primeiras são formadas por cidadãos, ao passo que as últimas são formadas por indivíduos que se “submeteram” (aliás, o sentido principal da palavra “Islã”). De um lado temos a lei, constituída de baixo para cima; do outro lado, o Alcorão, a que todos devem se submeter. “A cidadania e a lei secular caminham de mãos dadas”, resume Scruton, pois somos todos participantes do processo de constituição das leis.
A segunda característica central na identidade da civilização europeia é a nacionalidade. “A lealdade à nação põe de lado a lealdade à família, ao clã e à fé; põe o foco do sentimento patriótico do cidadão não numa pessoa ou grupo, mas em um país”. Essa lealdade não existe onde o Islamismo se impôs. A maioria dos países islâmicos “nunca desenvolveu o tipo de ordenamento secular, territorial e baseado na lei que possibilita que um país se estabeleça como Estado-nação, não meramente uma assembleia de tribos e famílias em competição”. Nesses países não existe propriamente uma identidade nacional. A lealdade é prestada exclusivamente à religião.
A terceira característica fundamental da civilização ocidental é o cristianismo. Escreve Scruton: “Não tenho qualquer dúvida de que os muitos séculos de predomínio cristão na Europa lançaram as bases da lealdade à nação como um tipo de lealdade acima da que é devida ao credo e à família e sobre a qual pode erguer-se um ordenamento de cidadania”. Jesus simpatizou com a ideia de um governo secular. Daí a famosa frase na parábola sobre o dinheiro dos impostos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
O cristianismo, acrescenta Scruton, é muitas vezes descrito como a síntese entre a metafísica judaica e os ideais gregos de liberdade política. Essa contribuição grega para o cristianismo leva o filósofo a formular a quartacaracterística fundamental do mundo ocidental, que “vale a pena enfatizar na comparação entre o Ocidente e o Islã”: a ironia. O filósofo cita como exemplo os juízos e as parábolas de Jesus – uma ironia que “vê o espetáculo da loucura humana e nos mostra uma maneira ‘des-torcida’ de conviver com ela”.
Significativo, nesse sentido, é o veredito de Jesus no caso da mulher apanhada em adultério: “Aquele que não tiver pecado, que atire a primeira pedra”. Em outras palavras: “Vamos: vocês não queriam ter feito o que ela fez e já não o fizeram nos seus corações?” Lembra Scruton que o apedrejamento de mulheres por adultério é comum em muitas comunidades muçulmanas ainda hoje.
Para o filósofo britânico, a ironia pode ser mais bem compreendida como uma virtude, “uma disposição voltada para a realização prática e o sucesso moral”: “Se eu fosse arriscar uma definição para essa virtude, diria que é o hábito de reconhecer a alteridade em tudo, inclusive em si mesmo. Não importa quão convencido alguém possa estar de justiça das suas ações e da verdade de suas ideias: deve olhá-las como as ações e as ideias de outra pessoa e reformulá-las de acordo com o que vir. Definida dessa maneira, a ironia mostra-se bastante diferente do sarcasmo. É um modo de aceitação, não de rejeição, que funciona em dois sentidos: pela ironia aprendo a aceitar tanto o outro a quem observo como a mim, o observador”.
A ironia, por sua vez, está intimamente ligada à quinta característica notável da civilização ocidental: a autocrítica. Prossegue Scruton: “É quase natural para nós querer ouvir a voz dos nossos oponentes assim que fazemos uma afirmação. O método antagônico de deliberação é ratificado pelo nosso sistema legal, pelas nossas formas de educação e pelos sistemas políticos que construímos para negociar os nossos interesses e resolver os nossos conflitos”. Há disposição semelhante entre os islâmicos? Uma vez que a única verdade está no Alcorão, não há o que discutir. Prevalecem seus mandamentos, aos quais os fiéis devem se submeter.
A autocrítica forjou a representação, outro ponto essencial (osexto) da civilização ocidental: “Nós, ocidentais, especialmente os anglófonos, somos herdeiros do hábito de longa data de associarmo-nos livremente, o que leva a nos juntarmos em clubes, negócios, movimentos sociais e fundações educacionais”. Esse hábito associativo anda passo a passo com a representação. Quando formamos um clube ou uma sociedade de caráter público, exemplifica Scruton, “vamos apontar comissários que a representem”. As decisões desses comissários comprometem todos os membros, que não podem rejeitá-las sem sair do clube. “Assim, um indivíduo isolado é capaz de falar por todo um grupo e, ao fazê-lo, compromete todo o grupo a aceitar as decisões feitas em seu nome”.
Uma vez mais, nada semelhante nas sociedades islâmicas tradicionais. A unidade social básica não é a associação livre, mas a família, sob a lei islâmica. Todas as entidades públicas, inclusive escolas e hospitais, são submetidas à mesquita e governadas por princípios religiosos. Em vez da cidadania, o que temos é a “fraternidade”. Escreve Scruton: “Como consequência dessa longa tradição de associar-se apenas sob a égide da mesquita ou da família, as comunidades islâmicas não têm o conceito de porta-voz. Quando conflitos sérios irrompem entre as minorias islâmicas no Ocidente e o mundo ao seu redor, é difícil, quando não impossível, negociar com a comunidade muçulmana, já que não há ninguém que fale por ela ou que lhe conseguirá impor qualquer decisão”.
Basta observar o silêncio das autoridades muçulmanas em geral diante dos ataques terroristas que, com horror, temos presenciado em vários países europeus. É raro que qualquer dessas autoridades condene os ataques.
O que torna possível a vida dentro das características do mundo ocidental alinhadas por Scruton? Ele próprio responde: a bebida. “Aquilo que o Corão promete no Céu, mas nega na terra, é o lubrificante necessário para o dínamo ocidental”. Excessos à parte, a bebida reúne pessoas até então desconhecidas que podem entrar rapidamente em acordo.
Bem diferente é a situação no mundo islâmico, embora a sociedade muçulmana tenha a sua própria maneira de criar associações com rapidez: o narguilé, a casa de café e a tradicional casa de banho. Mas essas formas de associação, para Scruton, “são também formas de retirada, um passo para trás com relação aos negócios de governo, numa postura de resignação pacífica”: “A bebida tem um efeito diferente: une estranhos num estado de agressão controlado, capazes e desejosos de falar sobre qualquer assunto que surgir na conversa”. Saúde!
O que fazer diante dos ataques à civilização ocidental?
Bernard Lewis vai às raízes históricas do Islamismo para demonstrar que o Islã encarna a negação dos princípios e valores ocidentais. Ayaan Hirsi Ali propõe, em livros mais recentes, uma profunda reforma da religião islâmica – algo que talvez possa existir num futuro distante, pois pressuporia o abandono da interpretação literal do Alcorão. Mas faz bem em condenar o relativismo multiculturalista.
Como defender o Ocidente do terrorismo, então? Não superaremos o ressentimento islâmico considerando-nos culpados ou punindo a nós mesmos, como tem acontecido nos países liberal-democráticos. A resposta do saudoso filósofo Roger Scruton vai ao cerne da questão, convocando-nos a defender as boas coisas que herdamos: “Isso significa não fazer concessões àqueles que desejam trocar a cidadania pela submissão, a nacionalidade pela conformidade religiosa, a lei secular pela sharia, o patrimônio judaico-cristão pelo Islã, a ironia pela solenidade, a autocrítica pelo dogmatismo – e o alegre beber por uma abstinência censurante. Devemos desprezar todos os que exigem tais mudanças e convidá-los a viver onde a forma política que preferem já esteja estabelecida. E devemos reagir à sua violência com toda a força necessária para contê-la”.
Orlando Tambosi é professor aposentado da UFSC, doutor em Filosofia e jornalista.