No Paquistão, a criançada aprende na escola que a Caxemira é nossa "shah rug" (veia jugular); já os indianos acreditam que a região é seu "atoot ang" (membro indispensável). Tanto a poesia urdu como a persa estão cheias de louvores às belezas locais. "Se há um paraíso na Terra, é ela, é ela, é ela", escreveu o poeta do século 14 Amir Khusro. Desde a época da Partição, há 72 anos, Índia e Paquistão travam guerras na disputa pela Caxemira, cada um chamando o outro de "invasor" e "opressor".
De vez em quando, surge uma sugestão pouco convincente de que o povo da área talvez devesse fazer o que bem entender com seu paraíso: em 1948, por exemplo, o Conselho de Segurança da ONU pediu um plebiscito para que os caxemirenses decidissem seu próprio destino. Nada aconteceu. Tenho alguns amigos de ambos os lados da disputa e todos sempre disseram que, mais do que mais liberdade, condição especial ou fusão com um ou outro, eles gostariam de ser deixados em paz. Pela Índia e pelo Paquistão.
O que quer que seja que esses e outros habitantes dali queiram, certamente não foi o que ocorreu esta semana, com seu status especial e a autonomia relativa que tinha sob a Constituição indiana revogados; cerca de 35 mil soldados a mais em uma das zonas mais militarizadas do mundo; escolas e empresas fechadas; colapso da internet e das linhas telefônicas; líderes políticos locais, mesmo aqueles dispostos a colaborar com as autoridades indianas em Nova Déli, presos. Um ex-ministro da região disse, horas antes de ser detido, que fora um erro favorecer a Índia na Partição. E agora o país nos leva de volta à época da separação ao anexar o território e jogar milhões de cidadãos em uma jaula.
Muitos indianos estão comemorando esse aprisionamento. O ator Anupam Kher tuitou, todo alegre, que a "solução para a Caxemira" teve um excelente começo. Especialistas estão escrevendo que os caxemirenses sempre gozaram de muitos privilégios e, no entanto, questionam sua afiliação à Índia: vejam vocês, às vezes os jovens do Vale da Caxemira repetem slogans pró-Paquistão, agitando bandeiras desse país, comemorando a vitória ocasional desse país sobre a Índia.
Parece que o Paquistão não tem muita escolha a não ser jogar as mãos para o alto e dizer que vai reclamar nos fóruns internacionais
Antes de o Artigo 370 ser revogado esta semana, os caxemirenses tinham, em teoria, o privilégio de criar suas próprias leis e hastear sua própria bandeira. E que prerrogativa era essa! Foram punidos por ela durante décadas. Milhares simplesmente desapareceram; alguns, detidos por soldados indianos, contaram que foram forçados a comer sua própria carne. A Caxemira também foi palco do maior número de casos de cegueira causada por pistolas de ar comprimido da história da humanidade.
Entretanto, subjugar a população não foi suficiente; a torcida organizada do primeiro-ministro Narendra Modi quer uma nova versão da Partição, um massacre de classe internacional, tipo limpeza étnica. A força bruta da supremacia hindu tem uma lógica própria, e exige não só que os caxemirenses tenham seu futuro negado, mas também que sejam humilhados e punidos pelo pecado de não serem gratos aos indianos. Enquanto os indianos muçulmanos estão sendo linchados em todo o país por comercializarem carne de vaca ou sendo forçados a repetir slogans hindutva, os caxemirenses são presos em massa. Muito obrigado, mas não precisamos mais de parceiros.
Quando, alguns anos atrás, um líder do Partido do Povo Indiano, ao qual Modi pertence, disse durante um comício eleitoral que as mulheres muçulmanas deveriam ser retiradas de suas sepulturas e estupradas, soou como um fanático alucinado. Só que, cada vez mais, esse tipo de insanidade dá a impressão de ser um item na lista de afazeres dos nacionalistas hindus. No início desta semana, surgiram vídeos de jovens comemorando o fato de agora terem as garotas caxemirenses a seu dispor. Muitas vítimas da Partição original foram mulheres, estupradas ou mortas ao caírem em poços para fugir da violação. Agora, parece que os indianos acham que outra janela histórica se abriu.
"Não há disputa em relação ao território disputado da Caxemira. Sua terra, caxemirenses, é nossa terra", anunciou a Índia esta semana. A veia jugular paquistanesa foi cortada.
- Os gulags chineses para muçulmanos (artigo de Mustafa Akyol, publicado em 4 de janeiro de 2019)
- Liberdade vigiada (artigo de Joseph Coutts, publicado em 3 de junho de 2019)
- Os EUA não podem ganhar a guerra do Afeganistão por não saberem por que estão lá (artigo de Steve Coll, publicado em 31 de janeiro de 2018)
No entanto, parece que o Paquistão não tem muita escolha a não ser jogar as mãos para o alto e dizer que vai reclamar nos fóruns internacionais. Seu Exército já disse que fará o que for possível para ajudar os irmãos caxemirenses, mas os limites dessa decisão ficaram bem claros quando o primeiro-ministro Imran Khan falou ao Parlamento. "O que vocês querem que eu faça? Declare guerra à Índia?", questionou. Já fizemos isso quatro vezes e não temos mais disposição.
O Paquistão está apelando para a consciência mundial, mas o planeta está preocupado com outras coisas: os Estados Unidos já deram a entender que o que acontece no paraíso engaiolado é problema interno dos indianos. Além do mais, é pouco provável que um país que não consegue garantir a segurança de seus próprios Walmarts possa ajudar a restaurar a internet ou a dignidade de alguém.
A China, aliada mais antiga do Paquistão, vem treinando sua população uigur, muçulmana, a dançar e sorrir em frente às câmeras nos campos de concentração; Rússia e Israel são grandes aliados da Índia. O príncipe mais influente da comunidade muçulmana, o saudita Mohammed bin Salman, se referiu a Modi como "irmão". Os paquistaneses que estão genuinamente revoltados com a atitude do governo indiano também dão a impressão de que alguém lhes confiscou as terras. "A Caxemira é nossa" se espalhou pelas redes sociais.
Sigo uma palhinha do paraíso no Twitter: Sabbah Haji, diretora da Escola Pública Haji, no vilarejo de Breswana, nas montanhas de Jammu, que faz posts sobre o progresso de seus alunos e a saúde de seus cavalos e cães. No sábado, quando as conexões começaram a falhar, ela escreveu: "Quando nossa internet parar, não se esqueçam de que continuamos aqui". No dia seguinte: "Do nada, uma companhia do Exército apareceu no vilarejo hoje. Chegou à noite. Estamos a quase 3 mil metros de altura, no meio do nada."
Depois disso, só silêncio.
Mohammed Hanif é autor dos romances "A Case of Exploding Mangoes", "Our Lady of Alice Bhatti" e "Red Birds".
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