Incêndio da Boate Kiss deixou 242 mortos| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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O caso da boate Kiss atraiu a atenção da grande mídia em meados de 2013, com o incêndio na boate localizada na área central de Santa Maria (RS), durante uma comemoração universitária cuja atração principal era a banda Gurizada Fandangueira. Novamente, nas últimas semanas, a tragédia – que vitimou quase mil pessoas – voltou a estampar os noticiários, com o julgamento e condenação dos quatro acusados pelos homicídios consumados e tentados que teriam ocorrido no fatídico episódio.

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Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann (sócios da boate Kiss), Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão (vocalista e auxiliar da banda, respectivamente) foram condenados a penas que vão de 18 a 22 anos de reclusão. Os envolvidos foram acusados de praticar o crime de homicídio qualificado (por emprego de fogo, asfixia e motivo torpe) contra todas as vítimas, em razão do uso de um artefato pirotécnico por um dos integrantes do grupo musical, o qual soltou faíscas que incendiaram o teto de espuma do local. O fogo se alastrou rapidamente, causando a tragédia.

A imputação de homicídio se deve às alegações de que um dos sócios da boate teria dado a ordem de segurar a porta de saída do estabelecimento no momento do acontecido, impedindo que as pessoas se evadissem do local, enquanto o incêndio teria sido ocasionado pelo artefato pirotécnico preso à munhequeira do vocalista da banda, Marcelo.

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Os debates travados no plenário do Tribunal do Júri de Porto Alegre entre a defesa dos acusados e o Ministério Público se desenvolveram, em síntese, na diferença entre o elemento subjetivo do crime de homicídio: a intenção do agente.

Neste contexto, é importante que se explique que, em linhas gerais, os crimes possuem dois elementos constitutivos: o objetivo e o subjetivo, sendo o primeiro a conduta praticada pelo agente – conduta esta que enquadra o comportamento como crime, tal qual a conduta de “matar alguém” no crime de homicídio – e o segundo, a intenção do agente ao praticar a conduta criminosa.

Nesta linha, se os agentes, no momento que gerou os óbitos, sabiam que a sua conduta poderia causar a morte de outras pessoas e, mesmo assim, assumiram o risco de tal resultado, estariam agindo sob o elemento subjetivo conhecido como “dolo eventual”. Recorda-se, neste contexto, que esta foi exatamente a acusação lançada pelo Ministério Público. De acordo com o órgão acusador, os sócios da boate e os integrantes do grupo musical poderiam prever o resultado trágico que adveio de suas condutas; ainda assim, assumiram o risco, em flagrante despreocupação com as consequências danosas de seus atos, sendo todos condenados por homicídio doloso.

Espetáculo midiático desenvolvido em cima do trágico acontecimento pode ter ocasionado o desvio racional dos operadores do direito responsáveis por direcionar o julgamento e esclarecer aos jurados.

Entretanto, as imputações dirigidas contra os condenados são, notadamente, contraditórias à luz de uma lógica minimamente racional – com o perdão da redundância.

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Explica-se: para que o agente pratique uma conduta criminosa com dolo eventual, é necessário que este, ainda que não queira causar o resultado danoso, ao menos o preveja e assuma todo o risco decorrente de sua ocorrência, não se importando que ocorra o desvio do resultado. Para se admitir o dolo eventual no caso em tela, seria necessário que os agentes – tanto os sócios quanto os artistas – assumissem o risco de causar um incêndio que levasse à morte de quase mil pessoas, destruindo toda a boate e, além disso, colocando a si próprios em risco de vida, além de seus familiares ali presentes.

Neste sentido, exsurge a figura da “culpa consciente”, mais adequada para o caso e que muito se assemelha ao dolo eventual acolhido pelos jurados. Enquanto no dolo eventual o agente assume o risco de todo o resultado e não se importa com a sua ocorrência, na culpa consciente o agente até prevê que o resultado possa ocorrer, mas acredita que não se concretize, de forma que não deseja qualquer consequência danosa e também não assume o risco de sua ocorrência.

Por este ângulo, o enquadramento dos fatos no dolo eventual é, no mínimo, questionável no contexto em que as mortes ocorreram, visto que, caso as condutas praticadas tivessem sido cometidas com dolo eventual – e, portanto, com total assunção do risco –, revelaria um caráter suicida dos próprios sócios do estabelecimento e integrantes da banda, à medida que colocariam a si próprios em risco de vida.

À vista disto, a culpa consciente figura-se mais adequada aos fatos, visto que os agentes até poderiam ter previsto o ocorrido, mas confiaram, sinceramente e por motivos diversos, que ele não se concretizaria, não assumindo qualquer risco de ceifar a vida de centenas de pessoas e as suas próprias.

Conforme pode-se notar, a diferença é sutil, mas é clara. Todavia, todo o espetáculo midiático desenvolvido em cima do trágico acontecimento pode ter ocasionado o desvio racional dos operadores do direito responsáveis por direcionar o julgamento e esclarecer aos jurados – juízes leigos e, no mais das vezes, sem qualquer conhecimento jurídico – a diferença aqui exposta, e que culminou em um julgamento demasiadamente controverso.

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Leonardo Tajaribe Jr. é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal e delegado de Prerrogativas da OAB/RJ.