Iniciada em 2001, como resposta aos ataques terroristas ao World Trade Center, a missão militar dos Estados Unidos no Afeganistão é uma das incursões em solo estrangeiro mais criticadas naquele país, sendo frequentemente rotulada de mal planejada e, com isso, resultar num elevado número de baixas. Ao longo de seus 17 anos, cerca de 2,4 mil homens das forças norte-americanas foram mortos em combate ou como consequência deste. Na média, 141 baixas por ano, ou 11 por mês. Se são números impactantes para uma operação militar de ocupação territorial em outro país, a ponto de justificar críticas à operação, o que dizer quando indicadores mais graves são registrados onde não há guerra declarada?
Por mais absurdo que pareça, é exatamente isso que se registra no Rio de Janeiro. Nos oito primeiros meses de 2017, como agora amplamente alardeia a mídia, 100 policiais foram mortos no estado, em serviço ou de folga. Foram 12,5 assassinatos de agentes das forças repressivas por mês – mais, portanto, do que soldados na guerra do Afeganistão.
De fato, o colapso da segurança pública fluminense não é recente, tampouco pode ser tomado como surpreendente. O Estado apostou em um modelo midiático de combate ao crime, que teve nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) seu maior ícone, insistindo-se em ações politicamente corretas de abordagem do fenômeno criminal sob o viés estritamente social. Ideias de prevenção ao crime no médio e longo prazos, sob o clássico pensamento de investimentos em educação, saúde e lazer, enquanto a população e a polícia eram cada vez mais dizimadas pela ação ousada de bandidos bem organizados e aparelhados.
Traçando um paralelo com a medicina, seria como um hospital receber na emergência um paciente enfartando, e o médico receitar-lhe exercício físico e alimentação saudável. Pode até não estar teoricamente errado, mas é completamente inadequado para o momento e absolutamente ineficaz para resolver o problema imediatamente apresentado.
Vamos continuar aceitando como “naturais” as operações em que apenas o policial é que morre?
O resultado, assim, não poderia ser outro. Se a construção da segurança pública se assenta em premissas erradas e destoadas da realidade, as consequências não podem ser positivas, e a alarmante recorrência de assassinatos de policiais é uma das mais cruéis faces desse processo.
O nascedouro da catástrofe policial no Rio de Janeiro remonta a mais de três décadas, contando com boa parcela de cumplicidade da própria sociedade, sobretudo as classes média e alta. Numa época de liberdades sendo expressadas e reafirmadas ao extremo, o consumo de drogas se tornou abertamente tolerado, fazendo com que a figura do traficante fosse necessária – afinal, sem ele não haveria entorpecentes para consumo. E, exatamente para “justificar” sua atuação, abraçou-se a narrativa de que aquele, o bandido, não era o vilão, mas uma mera vítima da sociedade, perseguido por uma polícia cruelmente repressora, para jogá-lo numa cadeia de onde sairia pior. Estava formada a receita: vitimização do bandido, demonização da polícia e contestação das prisões.
Com a polícia demonizada, o bandido tolerado e as prisões repudiadas, não é difícil entender como natural a fragilização da sociedade e o fortalecimento dos criminosos. Estes, organizados e articulados, aumentaram muito seu poder. A polícia, em sentido oposto, sendo vista como vilã, enfraqueceu. A situação saiu de qualquer possibilidade de controle, e hoje os criminosos não apenas enfrentam como verdadeiramente caçam os policiais. E isso não só no Rio.
É uma guerra assimétrica, que só os bandidos assumem, reservando à polícia um enfrentamento desigual, não somente em aparato bélico, mas também em concepção social. Foi necessário que mais de uma centena de policiais viesse a óbito em um único estado para a questão tomar a grande mídia e causar um pouco de indignação, mas basta um único enfrentamento em que é o bandido quem morre para logo se lançar suspeitas sobre a atuação da polícia e cobrar rígida apuração de tudo, com direito a entrevista de representantes das organizações de defesa dos “direitos humanos” no horário nobre do noticiário.
Leia também: A segurança pública, o consenso e o descaso (artigo de Luerti Gallina, publicado em 24 de março de 2017)
Leia também: E quem vai defender a vida do bandido? (artigo de Bene Barbosa, publicado em 14 de novembro de 2015)
O exemplo mais recente se deu em São Paulo. Uma quadrilha fortemente armada, que acabara de assaltar mais uma residência, foi interceptada pela polícia e, em vez de se render, partiu para o confronto, deflagrando um intenso tiroteio. Como resultado, dez criminosos foram mortos, no que prontamente se deveria reconhecer como uma operação exitosa. Porém, o que logo ganhou as manchetes dos jornais foi a possibilidade de ter havido algum excesso policial, pois nenhum agente da lei morreu e os criminosos levaram muitos tiros. Até a Anistia Internacional se pronunciou sobre o caso, firmando a posição de que uma operação em que dez assaltantes morrem não pode ser considerada um sucesso, tampouco natural.
Há de se indagar, então, o que seria “natural”. Será que nosso histórico recente e a situação de caos atual não deixam nenhum legado? Vamos continuar aceitando como “naturais” as operações em que apenas o policial é que morre? Não podemos.
O resgate da racionalidade é absolutamente imperativo. Os valores precisam ser recolocados em seu devido lugar. No confronto com a polícia, natural é o bandido sucumbir. Ponto. Se não o for, cria-se um dantesco enredo, em que ao policial só é dado morrer, pois, mesmo quando vence e elimina o criminoso, sai socialmente derrotado, recebendo a crítica como “prêmio”.
A luta diária da polícia brasileira, assim, é inglória. Morrem mais policiais aqui do que soldados na guerra do Afeganistão, mas, enquanto lá se nutre amplo respeito pelos combatentes, honrados como heróis, aqui, sob uma aura de eterna desconfiança, apenas se põe à espreita do momento em que aqueles vão errar. Este, porém, é o maior erro de todos.
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