Existe uma longa tradição na Igreja Católica sobre a reflexão de temas hoje abordados pela bioética – dos escritos da patrística sobre o suicídio e sobre as leis até os documentos recentes do Magistério sobre eutanásia e a reprodução assistida. A bioética católica está fundamentada na fé e na razão. Dentro da visão católica existe o paradigma da sacralidade da vida, que está articulado em três princípios fundamentais: a criação por Deus, a indisponibilidade e a inviolabilidade da vida humana.

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A linha teológica de matriz católica considera na sua totalidade o agir humano: as intenções do agente, os valores em jogo, as consequências que derivam das decisões e o ambiente sociocultural em que está inserido o sujeito. Apesar de admitir exceções em casos particulares, para o Catecismo da Igreja Católica existem atos que por si mesmos, independentemente das circunstâncias em que se encontrem e das intenções do sujeito, serão sempre ilícitos, tais como o homicídio e o adultério. Dentro dessa visão, não é lícito realizar um mal, mesmo que com ele se possa atingir um bem.

A tragédia da garotinha de Pernambuco trouxe à tona dilemas complexos e uma encruzilhada ético-teológica e legal de dimensões poucas vezes vivenciadas em nosso meio. Um crime hediondo contra uma criança inocente, uma gestação gemelar de alto risco e o anúncio de excomunhão da mãe e dos médicos que provocaram o aborto pelo arcebispo de Olinda e Recife. Dois óbitos e um trauma triplo para a vítima (a violência sexual, a gestação e o aborto) de dimensões incalculáveis. Um verdadeiro massacre dos inocentes.

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A dignidade do embrião está hoje no centro de diferentes opiniões conflitantes, sobretudo pela questão das pesquisas com células-tronco embrionárias e pelo aborto. Mas pouco se fala do confronto que existiu entre algumas das grandes figuras do cristianismo de alguns séculos atrás e que pode nos auxiliar a compreender melhor o posicionamento da Igreja neste caso. Origen defendia que Deus criava a alma do homem desde o início. Fato este que confutava com o Genesis (2.7) "Formou pois o Senhor Deus ao homem do limo da terra, e assoprou sobre o seu rosto um assopro de vida; e recebeu o homem alma e vida". Então, de acordo com a Bíblia Deus criou o corpo primeiro e depois soprou a alma dentro dele. Mas isto causava dúvidas sobre a forma de transmissão do pecado original. Tertuliano e São Tomás de Aquino procuraram resolver esta questão defendendo que o mesmo fosse passado através do sêmen, como uma "infecção natural", enquanto Santo Agostinho defendia uma forma de passagem espiritual.

São Tomás de Aquino também acreditava que os vegetais tinham uma alma vegetativa e que os animais possuíam uma alma sensitiva. Nos seres humanos estas duas funções eram absorvidas pela alma racional. Esta alma racional era quem lhe possibilitava a inteligência e o tornava pessoa, o que na antiga tradição significava: "substância individual em natureza racional". Assim, Deus introduziria a alma gradualmente, primeiro a vegetativa e, a seguir a sensitiva. Apenas com o corpo já formado, é que a alma racional seria criada (Summa Theologiae 1.90). No Suplemento da Summa Theologiae (80.4) ele afirma que os embriões não terão parte na ressurreição antes de a alma racional ser infundida neles. Alguns teólogos modernos são mais cautelosos na interpretação da doutrina Tomista e preferem, dentro dos conhecimentos atuais da ciência, afirmar que a alma entra no ovo fertilizado apenas quando ele possui organização suficiente para abrigá-la.

Assim, é natural que a Igreja Católica venha em defesa da vida humana em todas as suas fases. Para ela o homem possui um princípio vital que é diverso em relação àquele existente nas plantas e nos animais. Isto porque ele provoca não apenas um crescimento biológico do indivíduo (como nas plantas) e lhe confere uma capacidade sensitiva e de movimentos (como nos animais), mas lhe dá a capacidade de desenvolver atividades imateriais e espirituais, tais como o pensamento, a vontade e a consciência moral. Por isso a superioridade do espírito humano e a sua dignidade específica, superior à dos outros seres viventes e não viventes. Mesmo que a alma não esteja presente desde o início, o ser humano, pela sua potencialidade ao desenvolvimento, merece proteção e respeito em todas as fases em que se encontre.

O moderno pensamento bioético e legislativo em nossa sociedade secular, por outro lado, busca definir suas condutas em cima de duas bandeiras: a da universalidade e a da fundamentação. Esse pensamento, que para alguns é inabalável, está colocado à prova neste momento e talvez nunca seja encontrada uma solução consensual para este caso. Como harmonizar uma conduta quando valores tão importantes, ou até basilares em nossa sociedade, são agredidos? O fato é que nesse caso, nem a lei dos homens e nem a lei de Deus puderam amenizar o sofrimento da garotinha de Pernambuco.

Cícero Urban, médico oncologista e mastologista, é professor titular das disciplinas de Bioética e Metodologia Científica na Universidade Positivo e vice-presidente do Instituto Ciência e Fé.

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