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Guilherme Boulos durante a campanha presidencial de 2018
Guilherme Boulos (Psol).| Foto: Daniel Ramalho/AFP

A apuração dos votos em São Paulo mostrou que Guilherme Boulos não é unanimidade nem nas periferias que julga representar. A realidade é insensível! Mas, se os “progressistas” não levassem tão a sério youtubers boçais, entenderiam o momento histórico atual e, principalmente, aquilo que Eric Hobsbawm apontava como erro crucial das esquerdas: sem causa comum é impossível a tal “frente ampla”.

Hobsbawm podia ter lá suas maluquices, mas sempre foi muito sensato nas suas críticas. Para ele, política identitária é a expressão máxima da antipolítica, pois baseia-se tão somente nas vontades subjetivas que divide, e não em causas comuns que são capazes de reunir as pessoas, como afirmou em O novo século: entrevista a Antonio Polito. Hobsbawm compreendeu, com 20 anos de atraso, aquilo que Augusto del Noce já dizia para um incrédulo Norberto Bobbio, que mais tarde teve de admitir: Del Noce tinha razão!

A crise da esquerda começou quando ela se tornou a burguesia que dizia combater. Compreender isso será difícil – e dolorido – para essa nova geração de militantes de DCE que se porta como uma aristocracia burguesa estudantil, e vive falando da periferia, mas nem sequer sabe o caminho que leva até lá.

Infelizmente, não adianta fazer como Boulos: deixar a cobertura do papai em Perdizes para se travestir de favelado no Campo Limpo. Boulos, aliás, é o próprio símbolo dessa nova era; é a encarnação caricata de Jean, o protagonista do romance O sangue dos outros, de Simone de Beauvoir: um burguês que nasceu burguês; até mesmo o seu repúdio à burguesia está impregnado da mentalidade burguesa. Assim como Jean, Boulos ostenta a ilusão de um dia ser operário, buscando, assim, algum sentido para a sua vida sem sentido. Mas uma outra personagem joga na sua cara que sempre haverá um abismo entre escolher ser algo e realmente sê-lo: um operário nasce operário, está condenado à sua trágica condição, ao passo que Jean, o pequeno-burguês, tem a liberdade de escolha.

Mesmo assim, Jean acredita ser possível moldar a realidade e escolher um novo destino. Carrega a culpa da própria existência, além de todos os remorsos por acreditar que suas ações só prejudicam o próximo. O mundo, portanto, é um campo de batalha, onde se admite alguns poucos momentos de trégua quando mentimos, quando somos hipócritas e lisonjeiros e buscamos refúgio nas ilusões. Afinal, o inferno são sempre os outros!

A revolta é o espírito da negação. E o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é. Jean, o pequeno-burguês de Simone de Beauvoir, renega a sua história para tornar-se um proletário. Mas, assim como Boulos, continua extremamente burguês; não adianta andar de carro popular e abrigar-se num partido político: ele sempre vai olhar a periferia com aquele olhar elitista de quem se acredita um super-herói que vai resgatar almas inferiores do abismo, para integrá-las a uma visão romântica de mundo ideal.

Assim, segura de estar do lado certo da história, moralmente redimida pela ideologia e purificada com alimentos orgânicos, a nova elite burguesa estudantil acredita já ser possível projetar o destino da humanidade. Ele crê que só é possível viver eticamente a partir do comprometimento com algum movimento político. Também crê que, em si mesma, a vida não tem significado algum; por isso, compete a cada um de nós ressignificá-la a partir de um ideal pré-determinado.

Sartre dizia que estamos condenados a ser livres. Mas não queremos a liberdade, não queremos ser responsáveis por nossas escolhas que, invariavelmente, serão erradas e condenadas no tribunal das redes sociais. Preferimos algo pasteurizado, um ethos ready-made que pode ser útil à nossa autoimagem.

Enfim, o problema do mundo moderno é que todos se pretendem um Übermensch nietzschiano, sem perceber a ironia do alemão: se precisamos apelar a uma humanidade idealizada, é somente porque não suportamos a nossa realidade. Melhor do que encará-la é criar um subterfúgio mental, onde todos são justos, famosos e bem sucedidos, quando na verdade somos nada mais do que frágeis pequenos-burgueses.

Se fugimos da humanidade real para abraçar um ideal abstrato, nada mais coerente que, como Boulos e os revolucionários da burguesia arrependida, ver o outro não como pessoa, mas como causa social. Difícil explicar, a quem não consegue perceber uma obviedade por si mesmo, que essa é a própria essência da tirania.

Diogo Chiuso é editor de livros em São Paulo.

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