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Quando a União Soviética colapsou, alguns países que a compunham, especialmente os do leste europeu, experimentaram processos de independência marcados por transições um tanto anárquicas, onde não se sabia exatamente quem passava a mandar e quem realmente assumia a autoridade política. Houve um vácuo de poder e uma enorme bagunça se seguiu por alguns meses. Nesse período, muitos generais e oficiais das forças armadas outrora soviéticas ficaram sem receber, e perceberam a oportunidade de desviar parte dos estoques de armas e munições que estavam sob seu comando.
Armada até os dentes para um conflito com os Estados Unidos que nunca aconteceu, a URSS guardava uma enorme quantidade de material bélico nos países fronteiriços na Europa, especialmente na Ucrânia. Fuzis, munições, mísseis e até helicópteros de guerra foram desviados para traficantes de armas que as revenderam para grupos terroristas e senhores da guerra do continente africano, mas não só. Muitos estados recorrem aos traficantes de armas, pois, não fossem eles, simplesmente não conseguiriam travar uma guerra de forma respeitável. Pense na dificuldade que é para qualquer governo adquirir armas de maneira legal, e toda a burocracia internacional necessária, que exige explicações, permissões e que certamente irá limitar o seu acesso e quantidade caso você seja um país irresponsável do 3° mundo. Além disso, existem problemas natureza geopolítica, pois se você compra armas de maneira pública, o seu vizinho ficará com medo de você e fará o mesmo. A fim de não desencadear uma corrida armamentista que os puxariam para uma crise, os EUA e a Europa muitas vezes se recusaram a fornecer armas para qualquer um. Mas adquiri-las de forma escondida através dos traficantes resolve esses problemas, agiliza muito as coisas, além de ser bem mais barato.
A oferta de armas nunca cessa para o mercado negro internacional. Sempre há alguma guerra acontecendo no mundo; e, quando ela termina, restam toneladas de balas e armamentos que não retornam para os países que as produziram. Os Estados Unidos gastariam mais se recolhessem de volta todas as armas que forneceram aos mujahidins no Afeganistão do que se simplesmente produzissem mais em suas fábricas; então, eles as deixam lá. E é ingenuidade acreditar que esse armamento todo permanecerá trancafiado em algum estoque para sempre. Países após décadas de conflito estão destruídos política e institucionalmente, muitos sofrem com sistemas politicamente fechados e não dispõem de partidos de oposição e imprensa livres, necessários para fiscalizar e denunciar autoridades. Assim, não são tão eficientes em fiscalizar o acesso e armazenamento de seu material bélico, ou impedir que a casta de militares se corrompa.
Sabe-se, através da investigação do número de série e chassis, que as armas que hoje estão sendo usadas nos conflitos do Sahel são de procedência das forças armadas líbias, pois Kadafi cuidou para que seu Estado fosse extremamente bem armado. Quando um Estado assim colapsa, as armas se espalham.
O que nos leva à Ucrânia. O que acontecerá com toda essa quantidade de armamentos que o Ocidente está transferindo para lá, após o fim da guerra? Os ucranianos têm o direito de defender sua pátria da forma heroica que têm feito, mas não tem como pensar que, após o fim do conflito, com uma sociedade destruída de um país que já era reconhecido pela sua notória corrupção, grande quantidade desse material bélico será desviado por autoridades militares e políticas. É quase inevitável. Com a nação devastada, podemos assistir à proliferação de máfias e até grupos terroristas na Ucrânia, agora muito bem armados. Pode-se repetir exatamente o que ocorreu após a dissolução da União Soviética, com o desvio dessas armas para regiões do mundo que sofrem por guerras civis ou que estejam na iminência de uma. No fim, o desencadear de qualquer guerra, em qualquer lugar, contribui para tornar o mundo inteiro um lugar mais perigoso.
Flávio França é historiador.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise