Uma sociedade que se diz civilizada não deve tratar crianças, adolescentes e adultos da mesma forma, tanto mais quando ela é instrumento de vingança social
A Constituição de 1988 acolheu disposição internacional (firmada pelo Brasil) de dar trato distinto a crianças e adolescentes, por sua peculiar condição de desenvolvimento. Inseriu capítulo próprio, no qual há um dever coletivo, envolvendo família, sociedade e Estado, de "cuidado". Ali se fez constar a afirmação de que menores de 18 anos de idade são inimputáveis penalmente. É uma garantia que não pode ser golpeada.
Pouco tempo depois veio o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e para o espanto dos que por ele lutaram, sobre ele pensaram, e os que atuam nesta área, ergueu-se um vozerio a dizer que era lei protecionista, conferindo um rol apenas de direitos. Ainda se diz, que se praticarem atos criminais o ECA "não dá nada". Sob a batuta da impunidade, ensaiamos o réquiem de nosso próprio infortúnio. Esquecemos que somos nós quem dá os limites e o caldo cultural para as crianças e os adolescentes.
Não soubemos interpretar o que significam as medidas socioeducativas, cabíveis para os adolescentes. Enquanto proposta de lei servem para indicar que o ato praticado destoa das normas (normas muitas vezes nem respeitadas pelos adultos), todavia com feição diversa das penas para os adultos, primando por um efeito pedagógico. Na verdade, são iguais às penas dos adultos: aos adolescentes cabe medida de internamento, aos adultos, regime fechado; para aqueles, semiliberdade, para estes, regime semiaberto e assim por diante.
Pior, a maioria absoluta dos locais de cumprimento de tais medidas são tão ruins, ou, por vezes, piores dos que as penitenciárias, cuja trágica situação tem sido noticiada a cada dia. É só lembrar que a Febem era uma delas para ver que o cenário muda pouco, quando não, piora muito. Em tais lugares, as violências são, não raro, mais frequentes, bizarras e letais do que nas penitenciárias. Os adolescentes são mais vulneráveis e são essas instituições, como as penitenciárias, lugares que favorecem o delito e incitam a violência.
Os adolescentes também recebem sanção e por vezes são privados da liberdade fora das hipóteses legais. Muito mais pelas suas condições socioeconômicas do que pelo fato praticado. O fato de termos organismos policiais que cuidam de crianças e adolescentes demonstra que estamos assistindo ao prelúdio de nossa desgraça.
Se adolescentes de 17, 16 ou de 15 anos conhecem o que é crime isso não faz esmorecer a garantia constitucional de que devem receber trato distinto. Até crianças sabem o que é crime. Aliás, com o fato criminal tomando as primeiras páginas e as manchetes isso cada vez mais se antecipa. Isso não muda nada.
Tomamos um fato criminal, especialmente violento, quando praticado por um adolescente pelo inverso do que ele significa. O ato violento pode decorrer de uma complexidade de fatores, relacionados à cultura, ao ambiente e à condição socioeconômica, o que vai muito além de uma responsabilidade atribuível só ao adolescente. Colocamos toda a culpa nele, em mais ninguém.
Deixamos, então, de olhar, que a opção por selecionar os sujeitos que serão submetidos ao Estado, inclusive para receber medida socioeducativa, tem se concentrado em fatores socioeconômicos: baixa renda familiar, escolarização precarizada, trabalho precoce. Manter um adolescente provisoriamente internado, às vezes, justifica-se por uma estrutura familiar inexistente. Ele vai amargar a intervenção estatal na sua vida.
Os fóruns e as delegacias apresentam um quadro muito similar entre adultos e adolescentes, pintado, em sua maioria, de preto e branco, com gente desvalida social e economicamente.
Uma sociedade que se diz civilizada não deve tratar crianças, adolescentes e adultos da mesma forma, tanto mais quando ela é instrumento de vingança social. A invenção da infância precisa ser reinventada.
Priscilla Placha Sá, professora de Direito Penal da UFPR e da PUCPR, advogada criminal, é conselheira estadual da OAB/PR e membro da Secretaria Executiva do Movimento Pró-Defensoria Pública do Paraná.
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