No próximo dia 11, deve ser retomado, no Supremo Tribunal Federal, um julgamento sobre a doação de sangue por parte de homens que fazem sexo com homens (HSHs). A ADI 5543 foi protocolada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e o placar estava em 4 a 0 pela liberação quando, em 2017, o ministro Gilmar Mendes pediu vistas.
No Brasil, a regra atual exige um tempo mínimo de 12 meses sem relações sexuais entre homens para se permitir a doação. Esta exigência não é uma jabuticaba brasileira, muito menos fruto de preconceito ou ignorância, como afirma a ADI. Ela tem relação direta com a diferença na frequência de doenças sexualmente transmissíveis entre a população geral e a população de HSHs – algo comprovado cientificamente, e não fruto de algum tipo de discriminação.
A frequência de sorologia positiva, por exemplo, é menor que 0,1% para as hepatites B e C e inferior a 0,05% para o HIV na população geral, enquanto que a prevalência do HIV nos HSHs é de cerca de 15%, sendo que apenas metade deles sabe de sua condição sorológica, segundo diversas pesquisas e levantamentos feitos nos últimos anos. Ou seja, uma incidência superior em mais de 300 vezes à frequência encontrada entre os doadores de sangue. Em grupos transgêneros, a frequência pode chegar a 65%, 1,3 mil vezes superior à frequência encontrada entre os doadores de sangue. Isto não é preconceito, é epidemiologia.
Ora, a própria OMS recomenda regras diferentes para doação de sangue por HSHs. Segundo seus próprios dados, essa população tem 19,3 vezes mais chances de ser acometida por HIV que homens heterossexuais. Os ativistas agora vão negar a OMS, que eles tanto louvam em diversas outras situações por seu viés claramente “progressista”? Voltando aos números, o sexo anal receptivo, segundo o site do Ministério da Saúde, tem 138 chances em 10 mil exposições ao HIV de provocar a infecção. Já o sexo anal insertivo tem 11 em 10 mil. Em outras palavras, o sexo anal passivo tem um risco enorme de infecção. Já o sexo pênis-vagina receptivo tem 8 chances em 10 mil e o sexo pênis-vagina insertivo tem 4 chances em 10 mil. Já o sexo vagina-vagina tem taxas de infecção ínfimas, o que justifica a ausência de regras impeditivas de doação de sangue para o grupo de mulheres que fazem sexo com mulheres.
Outros dados importantes para a tomada de decisão são os que mostram que as taxas de infecção continuam muito mais altas no grupo de homossexuais homens. Embora os heterossexuais englobem cerca de 90% da população, os estudos mostram, por exemplo, que de janeiro a junho de 2016 a taxa de casos novos de HIV englobou 36,7% de heterossexuais e 59,5% de homossexuais homens e bissexuais. Dados do Ministério da Saúde de 2015 a 2018 mostram que casos novos passaram de 11.579 para 14.596 dentre homossexuais masculinos e de 8.202 para 9.599 dentre heterossexuais. Os números são gritantes e saltam aos olhos.
Mas por que defendemos que o STF não se envolva nesta discussão, que deve ser feita somente por critérios técnicos e não pelo Judiciário? O motivo principal é que, por causa de ideologias, nós iremos colocar em grande risco a população que necessita de sangue no país. Como é sabido, todo teste diagnóstico, por melhor que seja, sempre estará sujeito a falhas, pois ele tem uma taxa de falsos negativos que depende da eficácia de sua metodologia e da prevalência do risco na população testada. Quanto maior o risco, maior a chance de ocorrer uma falha. Quanto maior a quantidade de pessoas portadoras de DSTs (em especial o HIV) doando sangue, em especial as que não são cientes de seu status sorológico, maior o risco de passar uma bolsa contaminada como falso negativo.
E esse é outro risco que corremos. Com a liberação ideológica em curso no STF, poderá haver um estímulo para que pessoas que se colocaram em situação de risco procurem a doação de sangue de forma a descobrirem se foram contaminadas ou não. E aqui está o pior dos perigos, pois essa pessoa poderá ter sido contaminada, mas ainda estará em período de janela imunológica – quando a pessoa está infectada e tem o vírus em seu corpo, mas ainda não desenvolveu anticorpos passíveis de detecção pelos testes usados nos laboratórios, um problema ainda insolúvel. O desenvolvimento da ciência já aumentou em muito a eficácia dos testes. Os primeiros kits tinham uma janela imunológica de cerca de 60 dias. Atualmente, com a tecnologia NAT, chega-se a cerca de 12 dias. Este sangue contaminado, caso transfundido em alguém, com o apoio do STF, irá provocar infecção por HIV em um paciente inocente.
Por mais que confiemos nos laboratórios brasileiros, é sempre importante lembrar que nossos laboratórios não são os europeus. Enquanto estudos de países desenvolvidos mostram taxas de erros laboratoriais menores que uma por milhão com o uso da tecnologia NAT, no Brasil, segundo um infectologista da UFMG, no ano de 2017 tivemos no máximo dez casos de infecção por transfusão num universo de 40 mil pacientes. É algo substancialmente maior. Nós não temos evidências científicas de que diminuir o tempo de proibição de sexo entre homens para um período menor que 12 meses não aumente o risco de contaminação. Os países que fizeram isso se basearam essencialmente em causas ideológicas para diminuir o que convencionaram chamar de “estigma” dessa população.
Um homem que frequentemente tem relações sexuais com outros homens estará sempre no período da janela imunológica. O período de 12 meses é um tempo seguro para incluir a janela imunológica, erros de laboratório e diversos outros fatores que podem interferir na detecção do vírus. Com o avanço da ciência, é provável que este tempo possa ser reduzido com segurança. Não é o caso agora. Por questões ideológicas, para reduzir o tal “estigma”, optou-se por abolir o termo “grupo de risco” e só se usar “comportamento de risco”. Mas fica difícil explicar como não chamar de “grupo de risco” uma população em que a prevalência do HIV pode chegar a 300 vezes a da população geral. Portanto, o argumento do comportamento de risco não resiste quando confrontado com os dados da ciência, que comprovam a existência de extremada diferença de prevalência de HIV em nichos específicos da população.
Na tentativa de tumultuar o debate, é frequente grupos ativistas fazerem uso de argumentos falaciosos. O mais comum é se mostrarem indignados porque mulheres que fazem sexo anal não são proibidas de doar sangue, ao contrário dos homens que realizam a mesma prática de sexo anal receptivo. A resposta para isso tem de ser dita sem medo da patrulha do politicamente correto. O fato é que, de forma geral, o homem que realiza a penetração em cada caso tem uma chance completamente diferente de já ser infectado pelo HIV. O homem heterossexual, epidemiologicamente, tem uma chance muito menor de ser infectado. Isso se traduz, portanto, no risco muito menor de infectar a mulher. Isso é matemática, é evidência científica. Mesmo assim, grande parte das mulheres é infectada por homens que tiveram relações homossexuais.
Em diversos países desenvolvidos do mundo nem sequer se permite a doação – em nenhum momento da vida – para homens que já tenham feito sexo com homens. É o caso, por exemplo, de Alemanha, Áustria, Croácia, China e muitos outros. Países que seguem a mesma regra do Brasil (12 meses sem relações sexuais entre homens) incluem Estados Unidos, Holanda e Austrália. Tempo menor, como três a quatro meses, é exigido na França e na Inglaterra, por exemplo. Não há praticamente nenhum país desenvolvido que não estipule um tempo mínimo sem relações sexuais para a doação de sangue por este grupo. Como no atual momento político polarizado do país, ainda mais quando se trata de pautas das chamadas minorias, sempre se tenta levar tudo para a dicotomia direita x esquerda, é importante lembrar que as portarias que ditam este tempo mínimo de 12 meses são dos tempos dos governos do PT.
Aliás, estas regras diferenciadas, diferentemente do que os grupos ativistas querem fazer parecer, não são apenas para homens que fazem sexo com homens, mas também para diversas outras situações de risco aumentado, tais como sexo com desconhecidos, estupro, prostituição, cirurgias e tatuagens, dentre outras. São regras apoiadas por todos os órgãos técnicos, como a Anvisa, o Ministério da Saúde, a OMS e a Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia.
O desejo dos ativistas é que qualquer proibição seja baseada somente em dados das entrevistas baseadas no comportamento recente. E aqui se entra numa seara perigosa, que é o da confusão proposital de dados científicos e a tentativa de caracterizar qualquer um que mostre dados contrários como homofóbico, ameaçando inclusive com prisão após a decisão recente do STF que criminalizou a homofobia. Esta tentativa de intimidação ocorreu até mesmo com um dos autores deste artigo, quando, em audiência pública na Câmara dos Deputados, foi ameaçado de prisão por uma deputada do PSol somente por ter questionado os valores de cirurgias de redesignação sexual para transgêneros realizadas pelo SUS.
É importante que os órgãos oficiais de saúde, como a Anvisa e o Ministério da Saúde, se manifestem de forma incisiva e técnica nestes dias para que a mensagem chegue aos ministros do STF, assim como esperamos que o CFM também se manifeste, principalmente após ter feito uma resolução na gestão passada liberando hormônios para menores de 18 anos que se dizem transgêneros, mesmo sem evidências científicas atestando a segurança disso. Não é razoável que uma questão científica tão grave e que pode colocar em risco a população que precisa de sangue seja decidida por leigos ao arrepio das evidências científicas. Embora o atual Ministério da Saúde seja de um governo dito conservador, suas posturas vêm sendo mais próximas das dos governos “progressistas” anteriores. Esta afirmação pode ser constatada pelos cargos técnicos, que continuam em grande parte alocados por pessoal “progressista”, e tem sua comprovação máxima na manutenção da portaria do aborto de 2005, e que na prática libera o aborto no Brasil. É fundamental a sua revogação por um governo que se elegeu dizendo ser contra o aborto.
Da mesma forma, é necessária uma atuação firme do Ministério da Saúde no convencimento dos juízes do STF e da população para que o placar de 4 a 0 a favor da liberação total da doação de sangue por homens que fazem sexo com homens seja revertido em prol da segurança da população. Mesmo com todas as dificuldades, há muitos anos o Brasil não tem casos de transmissão de HIV por transfusão de sangue. Se o STF se intrometer na ciência e violar uma regra de segurança sanitária, obrigando os postos de saúde a aceitar doação de sangue de populações de HSHs, perderemos a barreira da baixa prevalência pré-teste e então a pergunta não será se um dia voltaremos a ter transmissões de HIV por transfusões de sangue, e sim quantas teremos por ano. Quando esses casos chegarem à Justiça, em quem o Poder Judiciário vai colocar a culpa?
Raphael Câmara Medeiros Parente, doutor em Ciências, mestre em Epidemiologia e médico do departamento de Ginecologia da UFRJ, é membro do Conselho Federal do Conselho Federal de Medicina. Francisco Eduardo Cardoso Alves, médico infectologista, é médico assistente do Instituto de Infectologia Emilio Ribas (SES/SP) e delegado do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).