Um bom modo de compreender a presente situação cultural brasileira é recorrendo ao conceito de “sistema pós-totalitário”, cunhado pelo intelectual e político tcheco Václav Havel no seu clássico O Poder dos Sem Poder. Com o termo, o autor buscava diferenciar o sistema comunista de seu tempo, já relativamente (ou aparentemente) mais aberto, das formas mais ortodoxas de ditadura. Enquanto estas se sustentaram habitualmente sobre o uso ostensivo da força, aquele ensejava uma forma de dominação que, não obstante menos potente no curto prazo, tende a ser mais duradoura, porque invisível e insidiosa.
Tratando do mesmo tipo de totalitarismo silencioso, que aflige mais o espírito que o corpo, a escritora bielorrussa Svetlana Aleksievitch aborda, em O Fim do Homem Soviético, o significado cultural da cozinha doméstica nos tempos da URSS. Naquele Estado policial, as cozinhas converteram-se em espaço de resistência, no qual celebrava-se a intimidade de resto tão violada, e onde as pessoas se permitiam pequenos gestos de subversão, como contar piadas sobre os “camaradas” do Partido ou falar mal do governo – tudo com o rádio ligado no volume máximo, é claro, para burlar as eventuais escutas da polícia política.
No país em que parte da classe falante defende a Cracolândia, um reles cigarro aceso fere de morte as suscetibilidades
O Brasil vive hoje situação similar, na qual a espontaneidade e a liberdade de consciência foram obrigadas a buscar refúgio na “cozinha”, longe do insidioso sistema pós-totalitário imposto por nossa elite cultural, que empunha o politicamente correto como arma de intimidação e constrangimento moral.
Nos últimos dias, tivemos exemplo do quão subversivas se tornaram atitudes outrora comezinhas, o que por si só sugere a radical transformação cultural pela qual passou o país nas últimas três ou quatro décadas.
Uma delas foi realizada pelo maior intelectual brasileiro vivo, que, depois de um sintomático bloqueio midiático de décadas, apareceu pela primeira vez numa tevê aberta e performou o mais escandaloso dos gestos: acendeu um cigarro. No país em que parte da classe falante defende a Cracolândia como um espaço de resistência (a quê, não se sabe), um reles cigarro aceso fere de morte as suscetibilidades. Olavo de Carvalho fez em cadeia nacional o que então se vinha fazendo nas “cozinhas” por medo de represálias dos fiscais dos bons costumes.
Do mesmo autor: Zé Dirceu e a sedução do mal (13 de maio de 2017)
Francisco Escorsim: “O Olavo de Carvalho não é para ser comentado” (5 de junho de 2017)
Outra foi da senhora que, em programa prafrentex da maior emissora nacional, ousou desafiar o imperativo da desconstrução de gênero e dizer que incentivava o filho pequeno a brincar com brinquedos e a usar cores de menino, tudo isso diante dos olhares de reprovação dos “especialistas”, que a miravam com um misto de perplexidade e condescendência, como se pensassem: “Pobre fóssil ambulante! Não sabe que não existe mais essa história de coisas de menino e coisas de menina? Nós, especialistas em gênero, já decretamos o fim desses arcaísmos”.
A senhora, de nome Jaqueline (e que aqui apelido carinhosamente de Jaque), foi ainda ostracizada por uma matéria de jornal, que procurava complementar o trabalho iniciado pelos olhares de reprimenda dos censores politicamente corretos. “Participante da plateia do Encontro é criticada na web por não deixar filho usar rosa” – diz a matéria, evidentemente pinçando alguns comentários críticos e ignorando todos os demais, de modo a incutir na perigosa subversiva a sensação de isolamento, desencorajando futuros atos de blasfêmia contra a cartilha progressista.
Assim como Olavo, Jaque também ousou dizer fora da “cozinha”, diante dos pretensos donos da opinião pública, o que só se permite dizer ali dentro. A Jaque resiste! Experimente resistir você também.