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Durante décadas, minha avó cuidou de uma planta desengonçada e bagunçada que, pelo que eu via, não tinha nada para merecer tamanho zelo. Era feia, um emaranhado verde estranho no qual pareciam fazer falta vários elementos botânicos, tinha caules longos que se esticavam de uma forma levemente ameaçadora e gerava novos ramos, aleatoriamente, a partir de dentro dessas extensões. Alguns eram arredondados; outros, chatos, um terceiro grupo tinha folhas serradas e, em alguns casos, nem folhas havia. Parecia mais coisa saída de algum pesadelo. Quando era menina, achava que podia me morder.

Nos meses mais quentes, ficava na varanda da frente da antiga sede da fazenda, tão deselegante quanto ela, uma estrutura de passarela que foi sendo agregada sem nenhum planejamento ao longo dos anos. Quando as noites começavam a esfriar, no início do outono, minha avó levava a planta para dentro, colocava o vaso na mesa próxima à lareira e esperava, esperançosa, que brotasse. Dizia que era sua “série de florada noturna”.

Levou anos para eu entender que a tal espécie assustadora era, na verdade, um círio noturno-florescente, termo amplo que designa diversas variedades de cactos que desabrocham à noite – aliás, em uma única ocasião no ano. Quer dizer, nem isso é garantido: segundo consta, a “série” da minha avó só deu flor uma única vez em todo o tempo que a teve. Há apenas duas fotos dela coberta de botões, e ambas foram tiradas na mesma noite, durante os anos 60.

Não tenho a mínima ideia de como minha avó, uma professora de escola primária de duas salas espremida entre os campos de amendoim do Baixo Alabama, se tornou dona de uma planta tão exótica, mas entendo sua ligação com ela. A vida inteira tive vontade de ver a bendita em flor e, pelo menos até agora, a minha própria versão provou que de florescente não tem nada. A única coisa que cresce ali são apêndices ridículos; um dos galhos já tem quase 2,5 metros e continua crescendo. Essa variedade é uma planta que pega fácil, através de mudas de raiz. A minha saiu do espécime que pertence ao meu irmão e minha cunhada, já florescida várias vezes, mas a que está aqui em casa ainda não mostrou a que veio.

Levou anos para eu entender que a espécie assustadora era, na verdade, um círio noturno-florescente

Na semana passada, meu irmão mandou por celular uma foto do broto que acabara de descobrir em sua planta. “Talvez desabroche hoje à noite! Dei uma espiada no meu diário e, em 2014, ela estava totalmente aberta às oito em ponto”, escreveu. Os registros dele, aliás, também podiam ser considerados uma força da natureza, uma combinação de arte e observações detalhadas, e eu botava a maior fé em sua aposta. Por isso, peguei o carro e fui direto para a casa dele, em Clarksville, a mais de 80 quilômetros daqui, parando só para abastecer. Com o círio noturno-florescente, a transformação completa de broto em flor pode levar menos de uma hora.

Seguindo rumo oeste perto do pôr do sol me deixou meio cegueta, mas dava para enxergar alguma coisa através do para-brisa empoeirado e notar a secura das árvores ao longo do acostamento, cobertas de poeira. Nem sinal ainda das flores silvestres. As Carolinas podem estar submersas, mas muitas áreas do centro do Tennessee estão enfrentando uma estiagem difícil. De acordo com o Sistema Nacional de Informações Integradas, mais de 26 por cento do país está encarando a seca.

Não se preocupem, reconheço muito bem a ironia da situação: ali estava eu, atravessando uma paisagem ressecada, com o tanque cheio de gasolina e o vento quente das carretas que passavam por mim sacudindo o carro, em uma peregrinação mirabolante só para ver uma flor desabrochar.

Há apenas uma geração, minha família ainda vivia na fazenda, no interior, ou seja, passei grande parte da infância no mesmo mundo onde minha mãe foi criada, minha avó, minha bisavó e tantas outras gerações antes dela. Durante várias semanas por ano, eu dormia na cama que foi da minha mãe quando menina; andava descalça nas mesmas estradas de terra que ela percorreu, também sem sapatos, quando pequena; comia as ameixas escuras que cresciam ao lado da varanda que dava para o quarto dela – pelo menos até as frutas fermentarem sob o sol escaldante do Alabama, transformando-se em vinho tinto para as vespas que rondavam o pé.

Da mesma autora: O que significa ser amado por um cão (publicado em 24 de junho de 2018)

Leia também: A florada do ipê e a rede social secreta da natureza (artigo de Marcia C. M. Marques, publicado em 20 de setembro de 2018)

Hoje, apenas dois por cento dos norte-americanos vivem em fazendas ou sítios, mas não perdemos a necessidade de nos cercarmos de verde – o que talvez explique por que amigos e vizinhos já estivessem na casa do meu irmão e minha cunhada quando cheguei a Clarksville, e por que nos reunimos todos na sala deles, esperando o evento milagroso se realizar. O único broto da planta, que se bobear cabia na palma da minha mão, não estava com a mínima pressa de se abrir, os filamentos cor-de-rosa ainda rígidos à sua volta, uma hora depois da chegada de todos. “Parece que estamos contando as contrações, esperando o bebê nascer”, alguém comentou.

Até que, por fim, o botão começou a se abrir, a princípio uma abertura tímida na base. Os filamentos começaram a relaxar e se soltar. O vão se alargou, exibindo uma estrutura em forma de estrela se criando lá dentro – uma estrela branca dentro de uma flor branca – e as pétalas translúcidas se esticaram e se organizaram à volta da estrela. Totalmente aberta, a flor tinha pouco menos de 23 cm de diâmetro, seu perfume enchendo a sala de doçura. Não era, de forma alguma, planta de pesadelo; era uma flor dos sonhos. De manhã já teria desaparecido, só voltando o ano que vem. Se voltar.

Foi só uma flor em um dia comum de setembro. Sua chegada não fez nada para mitigar a seca que reina lá fora, muito menos para baixar as águas na Carolina do Norte. Você pode até dizer que foi um evento sem absolutamente nenhuma importância e eu nem pensaria em discutir.

Porque foi mais do que nada; aquele círio noturno-florescente me trouxe de volta minha avó, o cabelinho branco parecendo um halo ao redor da cabeça. Como também a ameixeira, há muito cortada, e a sensação da terra vermelha entre os dedos do pé. Em um momento de grandes rupturas culturais e desespero ambiental, durante uma hora me recordei de como é saber o mundo exatamente como deveria ser, de estar exatamente no lugar em que deveria estar.

Margaret Renkl, escreve sobre a flora, a fauna, a política e a cultura do Sul dos EUA.
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