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Em matéria de educação os tribunais são bastante be­­ne­­vo­­len­­tes com o chamado "fato consumado", não atentando pa­­­­ra a legitimidade da origem do suposto direito e o sub­­me­­tendo à situação fática consolidada posteriormente

O maior filósofo alemão antes de Kant, Wilhelm Leibnz, escreveu em A Justiça como Caridade do Sábio as tarefas do soberano visando obter a satisfação e a tranquilidade de ânimo de seus súditos. Tratou-se do Estado paternalista, cuja concepção era dominante na Alemanha de sua época, marcada por príncipes que não haviam tido a experiência da revolução.

Contra isso se insurgiu o pequeno grande professor de Königsberg, o mais universal de todos os provincianos, Immanuel Kant: a felicidade é algo pessoal e incomunicável, sendo que é dever do Estado propiciar a liberdade ao cidadão por meio da Constituição, para que cada um, com responsabilidade, possa alcançar a sua felicidade pessoal. Kant funda o Estado de Direito Moderno; rompe com o transcendental para submeter o Estado a uma ordem racional: o fim do Estado é a liberdade, entendida como a independência do arbítrio de outro na medida em que possa subsistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal.

Para surpresa daqueles que acham que a visão paternalista de Estado já esteja superada, nos deparamos com decisões judiciais em pleno Século 21 que, em minha opinião, distorcem completamente os fundamentos da ordem constitucional vigente no Brasil. O caso que aqui gostaria de comentar envolve a intervenção do Poder Judiciário nos procedimentos administrativos. Tratou-se, na espécie, de candidato que não efetuou o pagamento da taxa de inscrição de processo seletivo, o que, segundo o edital, era condição para a efetivação da inscrição. A decisão liminar que o autorizou a participar do certame de longe não atentou para a necessária ponderação dos bens em jogo, mas em sintonia com o pensamento de Leibniz acima referido, se sensibilizou profundamente com os argumentos do candidato de que estava estudando muito para o processo seletivo e que havia se esquecido de realizar o pagamento da taxa.

Em matéria de educação os tribunais são bastante benevolentes com o chamado "fato consumado", não atentando para a legitimidade da origem do suposto direito e o submetendo à situação fática consolidada posteriormente. A sentença, em sintonia com esse entendimento e tendo em vista a aprovação do candidato, assim se manifestou: "Por certo, devem ser respeitadas as condições editalícias – e este juízo tem reiteradas decisões nesse sentido. Todavia, no caso dos autos, mesmo entendendo o juízo pela inexistência do direito alegado, a eventual revogação da medida liminar acabaria por trazer mais prejuízos que a sua manutenção".

A situação agora é dramática, visto que a decisão liminar atropelou o direito e possibilitou uma situação fática de difícil reversão. De fato, se fez justiça nesse caso? É função do Poder Judiciário ser caridoso? A ausência de justificativas consistentes para o não cumprimento da regra do edital – aqui o argumento utilizado foi o esquecimento – leva a uma ausência total de regras. A boa intenção do caridoso é despótica, alerta que já havia sido feito por Kant: pense-se no candidato que não ingressou na universidade. De outro lado, numa sociedade de total liberdade, qual referência passa o Estado (aqui o Poder Judiciário) quando não observa as regras: como diz Charles Melman, em O Homem sem gravidade, "passamos de uma cultura fundada no recalque dos desejos e, portanto, cultura da neurose, a uma outra que recomenda a livre expressão e promove a perversão".

Marcos Augusto Maliska, procurador-chefe da UFPR e professor do Mestrado em Direito da UniBrasil.

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