Recentemente a Justiça brasileira, por meio de sentença exarada em 7 de setembro de 2021 pelo juiz André Ricardo Laurino de Oliveira Pereira, do 6.º Juizado Especial Cível/Fazendário da cidade do Rio de Janeiro, deu ganho de causa à ação impetrada pelo escritor Flávio Gordon, por meio do seu advogado Emerson Grigollette, referente ao bloqueio de sua conta pela empresa Twitter Brasil. Flávio, que também é colunista da Gazeta do Povo, ganhou a causa com uma pequena recompensa monetária e o Twitter foi obrigado a restituir sua conta na íntegra, no prazo de dez dias, incluindo, naturalmente, seus mais de 113 mil seguidores.
O feito não é de todo extraordinário, mas, considerando as inconsistências jurídicas que estamos vivendo nos últimos tempos por parte da nossa mais alta corte de Justiça, merece atenção em razão da recorrente prática de bloqueio de contas feitas pelo Twitter, Facebook e YouTube (sendo este com desmonetizações). O fenômeno não tem origem no Brasil, e sim nos Estados Unidos, onde até o presidente Donald Trump foi cancelado, e resulta do sentimento de prepotência que domina essas empresas de comunicação social. Seus donos e diretores, com suas vastas equipes de engenheiros, formuladores de algoritmos e censores, se arvoram ao mesmo tempo hermeneutas, juristas e juízes, tanto da moral e dos bons costumes, como se dizia antigamente, quanto do sentido das palavras e dos valores de verdade ou falsidade que elas contêm. Esse novíssimo sistema inquisitorial, bem mais portentoso e ominoso que outros que já existiram na história, não perdoa dissidentes do pensamento reto e certo que eles propõem. Sentem-se mais do que aptos – dignos – para censurar as ideias de quem quer que seja e, consequentemente, para bloquear e cancelar as participações daqueles que ousam escrever algo que esteja fora dos parâmetros do pensamento reto.
De qual caverna obscura da perversão humana teria emergido esse novo espírito inquisitorial, essa ânsia de perseguir os que não seguem a mesma cartilha da verdade? Quem dá suporte moral, social e político a essa horripilante esfinge de 10 mil milhões de cabeças da pós-modernidade? Resposta óbvia: um concentrado e impermeável segmento da sociedade que se tem como a fina flor da civilização científica e pós-moderna e que não tolera a existência de pensamentos e ideias diferentes que possam desafiar ou ao menos chacoalhar a segurança de suas posições nos pedestais de auto exaltação e desconfiada plenitude de poder. A nova irmandade de torquemadas geeks, à frente Zuckerberg e Gates, se sente ungida e consagrada pelas efusões de apoio e feliz subserviência da parte dessa classe social autossatisfeita, mas agora com os nervos em pandarecos, e da parte dos complacentes meios de comunicação tradicionais, ao bloquear contas, cancelar perfis, censurar ideias, condenar os recalcitrantes ao ridículo e desprezo dos seus pares, enfim, denegrir e humilhar dissidentes e livres pensadores, mesmo aqueles que já mansamente provaram ser pessoas sensatas, capazes de bom raciocínio e tendentes ao diálogo. Sem falar daqueles que ostensivamente apoiam o presidente incumbente do Brasil.
Esse novíssimo sistema inquisitorial, bem mais portentoso e ominoso que outros que já existiram na história, não perdoa dissidentes do pensamento reto e certo que eles propõem.
Profissionalmente, não são só reles escritores, comentaristas políticos e dissidentes culturais a penar pelas vituperações desse flagelo censurador, mas até renomados médicos clínicos e especialistas bem formados e praticantes, cientistas e pesquisadores das áreas de epidemiologia, genética, virologia e tantas outras – alguns portando um Nobel a tiracolo – são costumeiramente vilipendiados de negacionistas da ciência (que a essa altura se transformou em dogma), charlatães, curandeiros e, em último caso, até genocidas. O death wish já foi ventilado por conceituados jornalistas desse jaez, mas a forca, o garrote, o desmembramento são pouco castigo para divergentes. Só a fogueira, a crucificação ou a empalação dariam o devido merecimento aos apóstatas do pensamento reto e purificador.
Flávio Gordon é um antropólogo com doutoramento pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que vem se dedicando há alguns anos a escrever sobre diversos temas de política e sociedade, inclusive em relação à pandemia. Escreve uma coluna semanal na Gazeta e tem perfis em diversos meios de comunicação social. A sentença do juiz não inclui o objeto que teria levado ao bloqueio da sua conta, qual seja, o comentário escrito e seu possível teor alusivo, precisamente porque o Twitter, consignado como ré no processo, não se dignou a apresentá-lo à corte, seguro que estava de que sua ação de bloqueio bastava por si, conforme seus próprios critérios de julgamento. O juiz André Ricardo de Oliveira Pereira anotou na sentença que o autor da ação é pessoa pública e notória e conta com um número significativo de seguidores em sua conta.
Curioso em saber o motivo material, escrevi a Flávio Gordon e perguntei-lhe qual porventura teria sido o teor do comentário incriminatório que, na sua avaliação, teria levado o Twitter a bloquear sua conta. OK, claro, foi sobre a pandemia. Flávio, como a grande maioria dos jornalistas, não é médico. Estaria ele entrando numa seara alheia sobre a qual nada sabe? Isso pesaria? Estaria enxovalhando a ciência? Praticando ostensivamente a arte de fake news? Em seu comentário, Flávio faz um desabafo compatível com a indignação que sente pelo fato de o Twitter estar censurando pessoas que propunham o tal do tratamento preventivo como um dos modos possíveis de dar combate ou ao menos amenizar as piores consequências do estrago que o coronavírus causa no corpo humano, inclusive sua morte.
O tratamento precoce ou inicial não é novidade na terapêutica médica mundial, desde os gloriosos tempos de caçadores-coletores. Porém, por obra e graça de uma terrível disputa política que engalfinhava nos Estados Unidos, e o equivalente sentimento de repúdio a tudo que propunha o inexpugnável líder da nossa orgulhosa república, a ideia de tratamento precoce e do uso de certos produtos farmacológicos de baixo preço e alta acessibilidade virou uma agressiva e conturbada controvérsia. Essa desinfeliz refrega já vinha rolando no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos desde pelo menos o mês de abril de 2020. No dia 18 de janeiro de 2021, quando a conta de Flávio sofreu o bloqueio, a vacinação estava começando no Brasil e na maioria dos países europeus e asiáticos. Os proponentes do tratamento precoce não sustentavam a sua exclusividade, ainda que disso fossem estridentemente acusados, e foi por tal aleivosia que se alimentou o sentimento de contrariedade e rejeição a quem ousasse propor algum tipo de tratamento médico, seja preventivo, seja precoce, seja inicial, seja complementar, à vacinação.
Enfim, Flávio Gordon, com a sentença judicial na mão, aguarda a reabertura de sua lojinha de comentários. Muitos amigos, seguidores e admiradores da verve aguda de Flávio sentiram sua falta nesses meses, e tinham alguma noção do que havia sucedido. Alguns, inclusive, desconfiavam de que não haveria retorno tão cedo. Oito meses poderiam ser considerados pouco tempo no sistema judicial brasileiro. Eu mesmo estou aqui a esperar. Mas há de se tirar algumas lições desse episódio que tem se tornado corriqueiro no Brasil.
A primeira lição é de que nosso sistema judicial está mal, mas não colapsou. Alguma coisa se segura e temos de pôr fé nisso. Tem gente trabalhando.
A segunda lição é que, parafraseando o chavão, não devemos desistir jamais de nossas convicções, a não ser que sejamos persuadidos pelo diálogo e pelo entendimento mútuo das ideias.
Finalmente, a terceira lição é chamar os adversários para a boa briga, na arena democrática, pelo diálogo de boa fé, pela ciência sem dogma, pelo acatamento às regras do jogo político, sem rodeios, sem enrolação.
O que todos devemos ter em mente é que as cartas estão todas na mesa. Todos os personagens são conhecidos, todos os truques podem ser descobertos. Há muita coisa que precisa ser esclarecida e não podemos ficar remoendo mágoas e ressentimentos sem ter um horizonte aberto para nos posicionar com mais clareza. O tempo está ruim, mas há de melhorar.
Mércio Gomes é antropólogo, professor da UFRJ e autor de “O Brasil inevitável” e “Democracia em convulsão”.