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Opinião do dia 1

A lei Ficha Limpa é inconstitucional?

Nossa Constituição certamente admite iniciativa po­­pu­­lar e aprovação por maioria absoluta dos repre­­sen­­tan­­tes do povo de lei proibindo a participação em eleições de pessoas já condenadas

O Brasil vive uma democracia com tímida participação popular. O povo atua na democracia somente no momento das eleições. Mesmo assim, com deficiência. Elege-se com base no apadrinhamento ou no assistencialismo; ou como resultado de marketing milionário, votando-se mais em um produto do que em um programa político. Vai-se ao shopping, e não ao debate. Enquanto isso, o direito constitucional brasileiro, em sua abstração, prevê o referendo, o plebiscito e a lei de iniciativa popular – que, na vida concreta, são esquecidos: há um plebiscito por década, e pouco mais que isso.

É nesse contexto paradoxal, aliado à permanente corrupção na política brasileira, que deve ser examinada a provação do PLC 58. Trata-se da lei contra os "fichas-sujas", apelido adotado para a vedação do acesso às eleições a quem tenha, contra si, decisão condenatória da Justiça Eleitoral ou Criminal, transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, ainda que não definitiva. Um dos pouquíssimos projetos de lei de iniciativa popular vistos no Brasil. Tal participação do povo na criação de leis é raridade. Merece incentivo, prestígio e, acima de tudo, respeito.

Mesmo assim, há quem levante a inconstitucionalidade da lei, por ferimento ao princípio da presunção de inocência. A abstração na qual se refugia a astuta razão dogmática permite discursos que acusam o projeto de ilicitude. Há opiniões honestas nesse sentido. Porém esse é tema no qual o cinismo recorrente de certos juristas se mostra mais ácido e de maior potencial danoso.

O controle de constitucionalidade impede que eventuais maiorias afastem o estado do rumo traçado por aqueles que o constituíram. O norte adotado pelo Brasil envolve, de um lado, a intolerância à imoralidade pública, à improbidade administrativa, ao nepotismo, ao abuso do poder econômico, à corrupção e à fraude; e, de outro, o incentivo ao exercício da cidadania e das vias democráticas. Por isso nossa Constituição certamente admite iniciativa popular e aprovação por maioria absoluta dos representantes do povo de lei proibindo a participação em eleições de pessoas já condenadas, embora em condenação provisória e, portanto, ainda não consideradas culpadas.

O projeto não considera ninguém culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Está fora do âmbito de incidência do inc. LVII do art. 5.°, que é um direito/garantia individual-penal. O que o projeto impede, na forma da vontade popular, é que alguém, mesmo não declarado culpado, possa concorrer em eleições, pelo justificado motivo da condenação provisória pretérita. O povo decidiu que aquele cidadão já condenado por órgão colegiado não merece ser aceito como candidato a representá-lo. O povo não quer ser representado por quem já tenha sido condenado, ainda que provisoriamente, pela justiça eleitoral ou criminal. Não se trata o cidadão inelegível como culpado: trata-se-o como al­­guém que, dada a decisão condenatória provisória, não tem a vida pregressa aceitável para ser um representante de todo o povo. É inelegível, não culpado.

Constitucionalíssima, a lei atende aos valores que a Cons­­tituição adota e defende, e merece ser protegida contra a ignorância jurídico-constitucional, a dominação política e, principalmente, contra o cinismo – que, se vencedores, trarão um desestímulo fatal à participação democrática ativa: um verdadeiro balde de água fria em todos aqueles que acreditam no aprimoramento da política brasileira.

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André Folloni, mestre em Direito, é professor da PUCPR e da UP.

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