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Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash

No âmbito da democracia, a liberdade é a maior garantia de sobrevivência da pessoa cidadã. As variações das circunstâncias podem favorecer a construção de remendos emergenciais sem, contudo, alterar direitos e garantias essenciais conquistadas pela condição cidadã ao longo do processo histórico de uma nação/civilização. Tendo essa crença matricial como fundamento hermenêutico dessa reflexão, o binômio democracia-liberdade torna-se fundamento político sobre o que a ordem moral deve ser assentada.

Alguém poderia, nessa altura, estar se perguntando se liberdade e democracia são unidades indissociáveis do ponto de vista semântico. Há vertentes políticas que defendem uma modalidade de democracia constituída por uma liberdade suprimida. Por essa razão (e a partir de agora), o conceito de liberdade merece ser objeto de reflexão. É preciso apreciar de mais perto sua natureza e do que ela trata em termos de uma ética de possibilidades morais, e quais são os limites de mobilidade que ela deve obedecer numa democracia funcional na qual as regras são necessárias para manter a operacionalidade da ordem social.

Numa democracia sadia, a liberdade deve ser entendida como um predicado natural da condição humana.

Essa compreensão permite compreender a liberdade como um fenômeno da moralidade a partir da qual se torna possível discernir a pertença de cada escolha feita em nível individual ou coletivo. A liberdade, no entanto, deve ser compreendida, a princípio, como uma condição na qual se estriba o juízo moral da escolha. Numa democracia sadia, a liberdade deve ser entendida como um predicado natural da condição humana. Vale ressaltar, de início, que enquanto forma de vida, a liberdade implica inevitavelmente em condição de mobilidade ontológica de um “eu-pessoa” na qual a interação com os outros eus deve se realizar dentro das possibilidades éticas e responsáveis a fim de se preservar a sobrevivência do chamado “mundo de vidas compartilhadas”. Essa é a vocação social da liberdade.

Isso quer dizer que a pessoa que usufrui um modo de vida livre não pode ser concebida como uma unidade simples e alienada de uma sociedade ou unidade social complexa. O status de cidadão é o que transforma a consciência do indivíduo, produzindo nele uma ética racional que distribui direitos e benefícios com o objetivo de fortalecer a psicologia da coexistência de pessoas humanas. A Constituição Federal garante que a liberdade é um direito para o indivíduo assistido pela condição de cidadão. Desta última – condição cidadã – ela é compreendida como um “direito fundamental”.

Neste caso, ela deve ser considerada como um bem sagrado que precisa ser protegido pelos guardiões da Constituição Federal. Na democracia, a liberdade é um valor moral, e não um direito individual compreendido como pavimento legal criado para justificar a atuação ilegítima de uma racionalidade transgressora como no anarquismo. Na situação de coexistência, liberdade implica em uma ponderação de possibilidades morais que deve construir um mundo sustentável para a condição cidadã. A liberdade, portanto, se mostra ao mundo da vida humana como um fenômeno que possibilita a criação de um tipo de sociedade em que a moral se torna parte constitutiva das lógicas de interação entre as pessoas.

Na democracia, a pessoa/indivíduo tem tanto direitos autoimputáveis quanto direitos que vão para além de si mesmo. No entanto, o âmbito no qual a liberdade transita é sempre o da moral. Nele, ela tem que realizar escolhas entre o certo e o errado, entre o justo e o injusto, entre o engano e a verdade, entre o permitido e o proibido. A liberdade é, pois, um fenômeno subjetivo com status de direito que garante à vontade de um eu-cidadão exercer uma escolha entre as muitas existentes.

A maturidade humana consiste do exercer dessa faculdade cognitiva sem sofrer qualquer tipo de constrangimento ou ameaça de punição. A liberdade favorece aos agentes de um mesmo espaço social o senso ponderável do eu na hora que ele tem que realizar escolhas morais legítimas respeitando os limites de segurança para sobrevivência da liberdade do outro. As garantias criadas para uma pessoa/indivíduo são as mesmas válidas para todos. Por isso é ilegítimo privar uns de certos direitos e outros não, como aconteceu recentemente no Brasil do período Covid-19. Direitos e garantias constitucionais são para todos. Esse deveria ser retrato ideal da liberdade cidadã característico de uma sociedade complexa formada por indivíduos diferentes com direitos fundamentais iguais. Se para um eles são garantidos, para os outros também deve ser.

Os direitos básicos ou fundamentais são garantias que foram criados na democracia para assegurar que benefícios individuais e coletivos atribuídos à cidadania não sejam injustamente estratificados de forma arbitrária por autoridades que se compreendem pessoas acima do bem e do mal. “O que vale para o Chico vale igualmente para o Francisco”, como diz essa sentença proverbial.

Se todos têm direito ao trabalho, como diz a Constituição Federal, não é justo permitir que alguns exerçam esse direito enquanto a outros os mesmos lhes sejam privados. Isso fere o princípio da não-contradição que desde os tempos longínquos foram ensinados pelos gregos. Por isso, o direito ao trabalho é um direito da pessoa complexo em sua condição solidária de incluir o outro como parte do modo de ser-compartilhar sua existência no mundo da vida. Não há, pois, contradição entre esses direitos fundamentais e a condição cidadã dos indivíduos, haja vista que eles são, organicamente, interdependentes.

Numa democracia sadia e funcional, a liberdade é uma condição que faculta a uma pessoa viver um tipo de mobilidade por meio da qual coexiste uma dupla finalidade: aquela que se apropria de direitos para garantir 1) tanto a auto-afirmação unitária de sobrevivência do indivíduo no mundo 2) quanto a auto-afirmação coletiva para sobrevivência de todos os outros indivíduos que com ele coexistem no mundo.

O direito à liberdade é, pois, uma garantia legal sobre a qual a mobilidade ontológica do eu-pessoa torna-se assegurada, protegendo tanto o seu direito de ir e vir no mundo da vida quanto o de outrem também. Sem essa compreensão hermenêutica dos direitos assegurados pela Constituição Federal, a liberdade pode se tornar uma “pedra de tropeço” na democracia, podendo aumentar, ainda mais, a sensação de desordem e de anarquia social. Por essa razão a liberdade da pessoa/indivíduo deve ser entendida como uma condição natural que qualifica o exercício de sua faculdade moral na realização de escolhas eticamente sustentáveis.

Viver numa democracia implica assumir a liberdade como direito natural. Por isso ela deve ser protegida de todas as formas e contra todos os seus inimigos. Nela, as garantias devem ser compreendidas como dispositivos legais que existem fundamentalmente para assegurar aos indivíduos que toda tentativa de violação às mesmas será resistida com a força da lei. Neste caso, direitos fundamentais devem ser evocados como estribos que asseguram a continuidade de benefícios adquiridos no presente e no futuro de cada cidadão que vive na democracia.

Esse grau de confiança só existe porque não se pode violar garantias constitucionais. Em qualquer horizonte pensado a partir da democracia, direitos fundamentais devem ser evocados como estribos que asseguram a continuidade de um benefício reconhecido legalmente no presente e no futuro de cada cidadão que nela vive. Direitos fundamentais selam a portabilidade de garantias e conquistas constitucionais que impedem qualquer movimento político ameaçar o futuro de um presente promitente.

Na revelação bíblica do Antigo Testamento, por exemplo, a lei operava com essa mesma noção, e num certo sentido ela se apresentava na mesma perspectiva semântica com o qual se fazia uso escatológico do conceito promessa. A narrativa de Gênesis trata disso quando cruza temas como uso da vontade, escatologia das escolhas e o futuro do presente da vida humana no mundo. A promessa engloba uma teologia da história e garante que o futuro não será dissociado do presente. Por isso a promessa é usada com força de um direito adquirido.

Esse é um exercício virtuosíssimo proporcionado pela natureza ponderável da qual a liberdade humana é composta. Se o futuro é construído a partir do presente por meio do uso de escolhas responsáveis, a democracia, de igual modo, deve ser compreendida como um sistema operante que condiciona psicologicamente as pessoas, desde cedo, a nunca tomarem decisões destituídas dos efeitos escatológicos que são aportados por esse binômio presente-futuro.

Diga-se de passagem, pois, que, na democracia, cada escolha humana deve ser tomada tendo em vista os desfechos escatológicos a ela associados. Por isso, a religião bíblica fala dessa simbiose (futuro-presente/futuro no presente) quando evoca o conceito de promessa epângelian na revelação bíblica. Este termo preconiza a noção pré-jurídica de um compromisso feito ou de uma garantia que se assume acerca de algo. As garantias, porém, eram invocadas no exercício litúrgico dos atos de memória realizados sempre no templo ou em um ritual religioso afim. A memória das promessas assegura que as garantias não seriam, no presente e no futuro, ab-rogadas.

Citá-las permanentemente significava tornar vitalícia a memória dos benefícios que delas se esperam apropriar. No entanto, quando se perdia a memória das mesmas, o indivíduo acabava se esquecendo das garantias oferecidas pelas promessas. Isso ocorria sempre que presente e futuro eram dissociados pela desmemorização das garantias preconizadas pela promessa. A memorização de direitos no presente pressupõe, pois, a inalterabilidade das garantias da condição cidadã no futuro. Essa lógica de continuidade não pode ser interrompida nunca.

Sem as garantias fundamentais, as pessoas serão forçados a viver sem a estabilidade assegurada pelos direitos inalterados e, portanto, sem um futuro garantido no presente

Essa análise deve projetar luz compreensiva sobre a recente experiência que os brasileiros, em geral, foram submetidos a viver. A compreensão da composição sinergética entre promessa/garantias/unidade cronológica deve ser objeto de reivindicação constante a ser realizada pela sociedade brasileira. Nela, uma noção semelhante a que foi feita anteriormente pode ser depreendida dos conceitos de direitos naturais e das garantias essenciais. Assim como nas religiões, a ideia de promessa deve estar associada à noção moderna que se depreende dos direitos fundamentais ou das garantias essenciais.

Isso porque o componente psíquico que se preconiza em ambos reforça a crença de finalidade dos direitos essenciais e sua função de assegurar a continuidade de benefícios conquistados a fim de fortalecer a certeza de uma vida amparada no futuro por conta das garantidas preservadas inalteradas no presente. Não é preciso rememorar o fato de que brasileiros foram encurralados em um beco escuro no contexto da Covid-19, sendo forçados a abdicarem da memória das garantias constitucionais associada aos direitos fundamentais da pessoa humana e cidadã.

Muitos se sentiram torturados por isso; outros foram espancados nas ruas; outros ainda, presos ilegalmente de acordo com a análise de muitos jurista, proibidos de exercerem o direito de ir e vir, de trabalharem para manter sua sobrevivência na vida. Será que detentores do poder jurídico da mais alta instância ignoraram o fato de que sem as garantias fundamentais asseguradas pela Lei Maior, o futuro tornar-se-á uma ameaça letal para o presente de cada cidadão de bem neste país?

De fato, sem as garantias fundamentais, as pessoas serão forçados a viver sem a estabilidade assegurada pelos direitos inalterados e, portanto, sem um futuro garantido no presente. Sem essa confiança, a hipoteca psicológica que sustenta a vitalidade dessa esperança entra em colapso.

Anderson Clayton Pires é doutor em Sociologia e em Teologia e Hermenêutica, pastor luterano e professor.

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