No fim de semana em que se realizava o festival de música Lollapalooza, uma decisão do ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral, repercutiu por todo o Brasil. Ao atender a pedido do Partido Liberal (PL), ao qual o presidente Jair Bolsonaro encontra-se filiado e pelo qual sairá candidato à reeleição, a decisão liminar do ministro fixou uma multa de R$ 50 mil contra os organizadores do evento no caso de ocorrência de ato de “propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos e grupos musicais que se apresentassem no festival” – isso porque alguns artistas, em alguns dos shows, haviam manifestado opinião de rejeição ao presidente Bolsonaro e de apoio à candidatura do ex-presidente Lula. Na decisão, constou que a manifestação individual de opinião dos artistas caracterizaria “propaganda política-eleitoral” na medida em que “os artistas mencionados na inicial estavam a fazer clara propaganda eleitoral em benefício de possível candidato ao cargo de presidente da República, em detrimento de outro possível candidato”.
A reação – quase unânime – foi de espanto e rejeição à decisão. Há duas razões claras para a perplexidade causada pela concessão da liminar: em primeiro lugar, porque a restrição à manifestação política dos artistas caracteriza censura prévia, o que é expressamente vedado pela Constituição Federal; e, de outro lado, o próprio regramento eleitoral possui dispositivo claro – o artigo 36-A da Lei 9.504/97 – no sentido de que só pode haver propaganda eleitoral na circunstância em que estiver presente o chamado “pedido explícito de votos” – e, no caso, as manifestações dos artistas que fizeram críticas ao presidente Bolsonaro ou apoio ao ex-presidente Lula não continham qualquer forma de pedido direto de votos.
Em síntese, a decisão desconsiderou toda a racionalidade jurídica que garante, no regime democrático, a livre manifestação do pensamento.
O conteúdo da decisão destoa não apenas do que preconiza a Constituição Federal, mas também de todo o entendimento consolidado – na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral – acerca da liberdade de expressão das pessoas físicas e as eventuais proibições decorrentes da regulamentação da propaganda eleitoral.
Mas o equívoco vai além. Do ponto de vista político, tanto o pedido do PL quanto a decisão a ele favorável acabaram por propiciar aquilo que os estudiosos denominam de “efeito Streisand” ou, ainda, de “efeito backlash”. Tais efeitos se operam quando a tentativa de proibir ou combater algum tipo de conduta acaba por produzir o efeito exatamente contrário. No caso em comento, o fato de ter sido proibida a manifestação de artistas durante suas apresentações fez com que tais manifestações se tornassem ainda mais fortes e objeto de maior repercussão. Não há dúvidas de que foi um erro estratégico. A demanda do partido de Bolsonaro deu ainda mais palco para o que se pretendia restringir – tanto que, nos dias seguintes, vários artistas fizeram atos de repúdio ainda maiores que aqueles que, possivelmente, teriam ocorrido se não tivesse sido proferida a decisão de natureza censuratória.
Voltando à perspectiva jurídica, a decisão foi um ponto fora da curva. No ambiente do Supremo Tribunal Federal, é sólido o entendimento de que a liberdade de expressão e de manifestação das opiniões políticas, por se tratar de direito fundamental indispensável ao desenvolvimento da democracia, goza, em princípio, de uma maior proteção. Ademais, a Constituição, em regra, também não admite quaisquer formas de censura. Mesmo quando em curso disputa eleitoral, a legislação é clara ao proibir a censura prévia de propagandas, programas eleitorais e outras formas de manifestação. Mas, no que diz respeito à possibilidade de os cidadãos manifestarem suas opiniões, sem conteúdo de propaganda, todo o regramento jurídico é unânime: não cabe censura! Em caso de ofensas ou cometimento de ilegalidades, as munições ou medidas reparatórias se fazem depois do ato de manifestação; a priori, todavia, jamais pode haver censura.
Aqui reside um outro grave problema dessa decisão: ainda que o ministro, posteriormente, tenha tentado esclarecer sua decisão atribuindo aos organizadores um suposto incentivo a essas manifestações políticas (e sem qualquer prova disso, vale esclarecer), na decisão originária ficou bastante claro que a ordem judicial exigia dos organizadores do festival a responsabilidade por impedir eventuais manifestações dos artistas, sob pena de multa. Essa determinação, para além de claramente desafiar a razoabilidade, trata-se de evidente medida que exige uma conduta de censura por parte das pessoas responsáveis pelos shows – situação que viola, com rara contundência, a proibição de repressão prévia a quaisquer formas de manifestação do pensamento.
Além disso, a decisão ainda se notabiliza como tecnicamente insustentável por considerar como propaganda eleitoral manifestações individuais de artistas, feitas de forma autônoma, espontânea e consciente, e sem qualquer remuneração por parte dos beneficiários.
Nesse sentido, a própria legislação eleitoral – seja no período anterior às eleições, ou no próprio período da disputa eleitoral – jamais considera expressões de opinião e de pensamento como propaganda eleitoral. Provenham essas manifestações de simples pessoas do povo em suas redes sociais, ou mesmo de artistas, jogadores de futebol, pessoas e lideranças públicas. Convém esclarecer que, mesmo havendo um controle contundente no que diz respeito à proibição do uso das concessões de tevê e rádio para fins de benefício eleitoral de candidatos, ainda assim a legislação eleitoral e o entendimento jurisprudencial são claros ao permitir o exercício da opinião crítica por parte de jornalistas e apresentadores, por exemplo.
Por fim, ainda que se trate de um incidente isolado – na medida em que o TSE, nas últimas três eleições, tenha sido bastante deferente ao exercício da liberdade de expressão –, é necessário que essa decisão sirva de alerta: tanto para que se assegure à sociedade o direito à livre manifestação do pensamento, quanto para que não se use do pretexto da defesa da liberdade de expressão para a propagação de fake news e ataques às instituições democráticas. Esse será o grande desafio da Justiça Eleitoral nessas próximas eleições.
Ana Carolina de Camargo Clève é advogada e presidente do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (Iprade). Guilherme de Salles Gonçalves é advogado e membro-fundador do Iprade.